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15 dezembro 2011

Aquilo - o filme




As pessoas dizem "vou fazer o possível".
Mas às vezes realizamos o impossível.
Este filme é parte deste impossível que se torna real.
Em meio à toda correria de final de ano e aos afazeres do dia a dia, consegui enfim
terminar a edição final de nosso curta-metragem. O trabalho de edição foi nos intervalos entre uma tarefa e outra, sobretudo aqui em casa com o Érico.

O trabalho é de um grupo maravilhoso de alunos e alunas de C10 (sexta série). Nos reuníamos uma vez por semana, por duas horas, à tarde. Eram meus horários de planejamento.
Foi tudo uma grande diversão. Mas também organização, encontro, amizade. Não valia nota alguma, eles/as vinham pelo prazer de criar.

Além do filme, consegui produzir também dois fanzines com textos de alunos produzidos nas aulas de Filosofia. Este o outro capítulo das loucuras de ser professor - e gostar do que se faz.

Que boas energias sigam nos tocando em 2012!
Axé! Saravá!

23 novembro 2011

O amigo se declara

E ele disse: "então vamos brincar de MSN".
É simples. Seguimos assim deitados no chão do quarto. Você me dá o seu braço que eu lhe dou o meu. A cada mensagem digitamos um no outro.
Aquela brincadeira prometia animar a tarde. Os dois confidentes. Ela, 12 ("mas quase 13").Ele 14. Os melhores amigos.
A conexão parece que está lenta. Por que você demora a digitar?
É que havia algo importante a ser dito.
Com o braço estendido sobre ele e o olhar perdido na pequena janela, ela ouviu o que jamais pensaria ouvir.
Ele declarou-se.
Logo ele. O confidente, o amigo, o íntimo. Aquele que dela tudo sabe, o senhor das chaves do baú dos segredos da adolescência.
E agora, o que fazer?
Ela digitou uma despedida rápida e rápido evadiu-se daquele MSN de surpresas.
Foi para casa. E pensou pensou pensou. E nem dormiu nem nada. Tem dias em que a vida nos prega peças.

Na manhã seguinte procurou o professor de Filosofia. Por algum motivo ou mistério ele parece possuir as respostas. Mas ele não tem resposta nenhuma. Ele só tem novas perguntas e a sua amizade, o que não é nada mal.
E com suas novas dúvidas ela foi vencendo a manhã, avançando lentamente naquele espaço de tempo quase infinito entre o recreio e a hora de ir embora.
Resolveu dar um tempo para si. Muito tempo para pensar. Talvez isto dure quase a vida toda, quase até depois de amanhã.
É preciso força, é preciso coragem. É preciso muito coração pra conseguir não magoar o amigo. Pois é o amigo dele que ela ama.
Mas talvez nem tanto. Mas talvez quem sabe. Mas quem sabe talvez.
Novas coisinhas agora palpitam. Outros temores e tremores.
O que acontecerá agora?
Quem sabe o deus Acaso se manifeste. Esperemos então.
Se um novo amor daí surgir ou se uma íntima amizade findar, prometo que lhes manterei informados.


A propósito: o professor também não saberia o que fazer.

07 novembro 2011

A nova moral do funk

Gênero modificou a natureza clandestina da pornografia

Marcia Tiburi

A afirmação adorniana de que após Auschwitz toda cultura é lixo não perde sua atualidade. Se, de um lado, a frase implica que a cultura não vale mais nada, de outro quer dizer que “lixo” é a melhor categoria explicativa da cultura como “aquilo que se rejeita”.

Mas vem significar também que cultura é a experiência do que sobra para os indivíduos levando em conta as condições socioeconômicas e políticas marcadas pela divisão de classes, de trabalho, de sexos, da própria educação dirigida de maneira diferente a pobres e ricos.

A partir da elevação do lixo à categoria de análise, podemos com tranquilidade ecológica (aquela que faz a separação dos descartáveis por categorias) partir para uma brevíssima investigação daquilo que se há de nomear como “moralina funk”, a performance corporal-sonora que se apresenta como o ópio do povo de nosso tempo.

Muito já se escreveu sobre o fenômeno que merece atenção filosófica urgente desde que se tornou a “cultura” que resta para uma grande camada da população de classes menos favorecidas econômica e politicamente.

Muitos afirmam que “o funk carioca também é cultura”, mas pouco comentam sobre seu sentido como capital cultural justamente porque seu único capital implica uma contradição: pobreza material e espiritual. Ou seja, capital nenhum.

Na ausência desse capital sobressai o que resta aos marginalizados. Eles descobriram o valor daquilo mesmo que lhes resta. Eis o capital sexual.

A performance da moralina funk depende desse capital sexual. Explorado, ele é a única mercadoria da consciência e do corpo coisificado. Seu paradoxo é parecer libertário quando, na verdade, é a nova moral.

Pornografia moralizante

Produto dos mais interessantes da sempre moralizante indústria cultural da pornografia, a esperteza do funk carioca é transformar em regra aquilo que foi, de modo irretocável, chamado por seus adeptos pela categoria do “proibidão”. A versão da coisa que não é para todo mundo.

A fórmula do funk é tão imbatível quanto a lei do estupro das histórias do Marquês de Sade. É o barulho como poder, ou melhor, violência. Nenhum ouvido escapa da moralina funk na forma de disfarçadas ladainhas em que as mesmas velhas “verdades” sexistas se expoem, como não poderia deixar de ser, pornograficamente.

A economia do proibidão

Mandamento sagrado da performance é que ninguém ouse imputar marasmo ao tão cultuado quanto profanado Deus Sexo.

Não existe uso da pornografia autorizado, pois a regra de sua moral é a clandestinidade. Daí a função do proibidão na economia política do funk. A história da pornografia oscila entre ser o outro lado da lei e ser apenas outra lei.

Foi isso que fez seu sucesso político em sociedades autoritárias contra o princípio publicitário que lhe deu origem. É o que está dado em sua letra: porno (prostituta) e grafia (escrita) definem, na origem, a mulher que pode ser vendida. E que, para ser vendida, precisa ser exposta.

A pornografia é, assim, uma espécie de exposição gráfica da mercadoria humana. Não é errado dizer que a lógica que transforma tudo em mercadoria tem seu cerne na “prostitutabilidade” de todas as coisas. Nada mais simples de entender em um mundo de pessoas confundidas com coisas.

Que a pornografia esteja ao alcance dos olhos, dos ouvidos, de todos os sentidos, exposta em todos os lugares, significa apenas que a regra do ocultamento foi transgredida. Mas implica também sua efetivação como publicidade universal. Isso explica por que ela não choca mais.

Na performance do funk carioca ela é altamente aceita em escala social. Seja pela pulsão, seja pela acomodação, se o imoral torna-se suportável é porque ele tomou o lugar da moral. É a nova moral.

A pornografia de nossos dias é tão bárbara quanto a romana pornocracia, com a diferença de que não temos mais nada que se possa chamar de política em um mundo comandado por regras meramente econômicas.

Daí que todo funkeiro ou seu empresário saibam que seu negócio é bom pra todo mundo.


Texto publicado na revista Cult, disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/11/moral-funk/

06 novembro 2011

Itamar Assumpção

São três horas da manhã já do outro dia
Eu pensando no futuro enquanto você dormia
Se eu morresse amanhã qual que será qual que seria
Da minha mãe meus irmãos
Minha mulher, minhas filhas
Minhas músicas, minhas lindas orquídeas
Sono que é bom eu não tinha
Mas tinha bastante dúvidas
Espinhos grilos conflitos confrontos e suicidas
Porque será que da morte
Não há caminho que torne?
Enquanto eu pensava nisso ocorreu-me o seguinte
Que eu poderia viver oitocentos milhões de anos
Neste planeta na gandaia e na folia
Louco de tanta alegria
Totalmente à revelia

Itamar Assumpção




Se alguém souber onde está passando o documentário "Daquele instante em diante", sobre o grande Itamar Assumpção, por favor me avise.

03 novembro 2011

Esta é a nossa Porto Alegre

Os buracos da minha rua estão de aniversário. Até os dentinhos já nasceram. São sagitarianos, eu acho. Meio humanos meio bicho pronto a engolir o seu carro.


Ao lado do prédio onde moro tem uma praça. É uma praça muito engraçada. Não tem brinquedo, não tem banco, não tem nada.
Mentira, tem um banco caindo aos pedaços. E um resquício de brinquedo, que mais parece uma daquelas instalações de arte contemporânea que o sujeito fica falando 30 minutos o que significa e você sai de lá sem entender coisa nenhuma. Tipo um barbante pendurado no meio de uma sala vazia - o artista jura estar transgredindo alguma coisa.

A nossa pracinha é bem divertida. Os carrapatos se divertem. Os ratos se divertem. As baratas ficam curtindo a vida livre dos lixos esparramados. É tudo alegria, sem repressões. Cachorros com donos ou sem lenço nem documento fazem lá suas necessidades, "passam fax" como diziam minhas colegas de trabalho. Agora eles não passam mais fax, porque já saiu de moda ou de linha. Agora os cachorros fazem o número dois. É. Assim mesmo, em público e sem pudor nem medo de olhares indiscretos.

Esta é a nossa Porto Alegre. A nossa província preferida. Mui leal e valorosa.
São tantas emoções...


Elenilton Neukamp

27 outubro 2011

Um amor eterno

Anteontem um aluno (tímido) veio ao meu encontro na sala de aula. Olhando desconfiado para os lados, disse que precisava falar comigo sobre "um assunto". No final da aula, intimidou-se com a presença de alguns colegas e disse que ficaria para outro dia.
Ontem voltei a ter aulas com aquela turma. Ele falou então, num tom quase inaudível, de seu drama. Ando meio surdo de tanto ouvir, pedi que repetisse várias vezes alguns trechos de sua narrativa.
Havia marcado um encontro, na sexta, com uma garota pela qual está apaixonado. "Mas eu não pude ir sor, aí ela ficou braba comigo". Eu disse que ele estava apaixonado? Perdão, menti. Ele me falou em amor, em não conseguir viver sem ela. Afinal, já viveu seus longos 12 anos de vida sem a presença dela. Agora se tornou insuportável, não há por que esperar mais. Doze anos é muito tempo sem o amor da sua vida.
E ele não tentou falar com ela depois? Claro que tentou. Vocês pensam que ele já não fez isto? Fez sim. Por vias indiretas, diga-se de passagem. Mas as amigas que foram dar o recado voltaram com um semblante carregado de más notícias. Ele ficou angustiado.

Tentei acalmá-lo, dizendo que a melhor maneira de resolver um problema é conversando. "Então eu tenho que ir falar com ela?". Olha, na idade dele o máximo que eu conseguiria fazer é escrever um bilhete. Se tivesse coragem. É óbvio que eu não lhe disse que nunca tive essa coragem. E que ficava apaixonado um ano inteiro por uma menina que jamais desconfiava disto (até porque morria de medo que ela percebesse).

Chegou o recreio e ele reuniu suas forças, organizou suas estratégias e encontrou enfim a melhor maneira de falar sem tremer os joelhos. Ou, em outras palavras, controlar os tremelicos e ao mesmo tempo organizar sons e proferir algo minimamente compreensível. Não deu certo. Por que o mundo é tão injusto com os tímidos?
Voltou do recreio inconsolado, desconsolado, maltratado por uma mulher cruel e desumana. "Ela olhou bem na minha cara e disse que não me quer nem pintado a ouro". E por que tamanha insensibilidade? Porque ele não foi no encontro da sexta, teve que fazer algo para sua avó.
"O que eu faço agora sor?".
Sua pergunta era sincera, candente, urgente. A maior pergunta da sua existência naquele instante. Poderia ter-lhe dito que as mulheres são assim mesmo, cruéis. Mas estaria mentindo, porque em crueldade e brutalidade os homens são especialistas há milênios. Seria perda de tempo tentar, naquele momento, um passeio pela breve história humana na Terra...o domínio masculino e sua tendência tosca a produzir a guerra e a destruição. Até porque ali, diante de mim, estava um jovem coração destruído.
Sem resposta ou filosofia alguma para lhe propôr, fiz o que em outros tempos seria minha melhor ação diante de uma mulher que me nega atenção - nada. Fiquei quieto. E reproduzi aquele movimento tradicional com os ombros, meio consolo meio desilusão.

Naqueles 50 minutos de aula ele se apagou. Parou de fazer o trabalho. Tirou o moletom. Escondeu-se, chorou, passou a maior parte do tempo cabisbaixo. Quando levantou a cabeça seus olhos estavam vermelhos e lacrimosos. Apenas pude lhe oferecer um olhar acolhedor. A experiência é necessária e supera em muito a racionalização, que apenas vai se dar em geral muito tempo depois. Em se tratando de amor não há manual, nem autoajuda. E isto todo mundo já sabia, muito antes de antes de antigamente.

Passou o período. E nos últimos dois ou três minutos de aula ele ressuscitou. Renasceu das cinzas como aquela ave mitológica. Sorriu, brincou até. O moletom úmido ainda das lágrimas foi rodado, balançado, colocado na cintura. Ainda sobraram uns segundinhos pra dar uns tapas no colega ao lado, por "puro arreganho", brincadeira mesmo. "Porque sabe, sor, aquela guria não me merecia mesmo...".

E saiu da sala com alegres cumprimentos, em leve corrida para dentro de sua sadia adolescência. Preparando-se e preparado para o próximo amor eterno que em breve deve cruzar o seu caminho.

24 outubro 2011

Elenilton, 39


São tempos meio malucos estes, até na comemoração dos aniversários. De qualquer forma, é inevitável que a gente pense na vida neste dia.

Recebi várias felicitações muitos dias antes da data, o que achei curioso.
Você percebe que o tempo está passando quando uma criança, que você não conhece, lhe envia uma mensagem de parabéns. A menina é filha de uma ex-aluna e assim se identifica, me chamando de "sor" e me conquistando com sua simpatia.
Também não posso deixar de registrar a gentileza da primeira-dama do Estado, que me felicitou por este dia. Entre a menina e a primeira-dama, uma constelação de amigos e amigas que fazem a vida fazer sentido.

Aos 39 já sou amigo dos filhos de meus amigos. E me identifico com eles, porque apesar de ter 39 anos de idade, tenho 16 de vontade e uns 50 de nostalgia - de passados que nem vivi e de futuros que irão se inventar.

Aos 39 ainda não sei comer massa direito, nem apontar um lápis sem que a ponta quebre. Faço tudo em casa, e sei cozinhar relativamente bem (às vezes muito bem), mas nunca soube muito bem como fritar um ovo. Vê-se que há coisas que não aprendemos nunca. Gramática, por exemplo. Escrevo sem saber das regras e parece que as coisas vão bem. Ao menos as palavras nunca reclamam de maus tratos...

Todos os dias aprendo alguma coisa nova com meus alunos e alunas. E as dezenas ou centenas de mensagens e e-mails que recebo todos os meses são a prova de que os professores seguem sendo importantes na vida das pessoas. Com emoção reencontro ou sou reencontrado quase todos os dias.

Estou na velhice de minha adolescência. O que quer dizer que agora consigo elaborar melhor aquela antiga indignação, que quanto mais antiga maior fica.
Não me corrompi nem entrei no jogo. Por isto encaro com alegria aquele menino de vila que fui e que segue vivo em mim. Eu não o traí. Nem mudei de lado. Estou na classe média, mas sem nenhum deslumbramento com suas ilusões de consumo. Sou o mesmo cara simples que você conheceu, com 12, 16, 23 ou os 39 anos de agora.

Aos 39 estou lendo mais poesia e literatura. A Filosofia vem em doses homeopáticas e certeiras. Sigo escrevendo. Livros prontos, mas a velocidade de publicar é mil vezes menor do que o desejo de vê-los passeando na rua nas mãos de bons leitores.

Aos 39 ainda preciso explicar meu daltonismo (que eu mesmo não entendo). Enxergo todas as cores mas só sei o nome das primárias. Me dizem "é aquele ali, o cinza..." e é como se estivessem falando grego. As pessoas pensam que 'me faço de louco', mas não é verdade: a loucura já veio incluída no pacote, é hereditária.
Mas mesmo sem entender as cores, e no meio de minha eterna rebeldia com as injustiças do mundo, sigo vendo e inventando cores e nomes.

Toda semana escrevo alguma coisinha no "Blog do Elenilton".

E a foto mostra um momento entre eu e meu guia para um mundo melhor, o Érico. É ele que tem ocupado meu tempo e meus maiores esforços neste 2011. É um doce, e uma hora dessas eu apresento pessoalmente pra vocês.

No mais, obrigado pelo carinho e seguimos. Porque 'o caminho se faz ao caminhar'.

18 outubro 2011

Veneno para as crianças

Quem trabalha em escolas percebe com facilidade o exagero na medicalização de crianças e adolescentes. Qualquer indisciplina, bagunça, ou os exageros próprios da adolescência são vistos como problemas de saúde passíveis de intervenção com medicamentos. O que antes era causado pelo destino ou por um deus interventor, agora faz parte de outro fatalismo: do DNA, da hereditariedade, dos distúrbios catalogados pela sagrada Ciência.
Não é raro ouvir comentários do tipo "o fulano só pode ter problemas mentais", ou "tem indícios de hiperatividade", "transtorno bipolar", "já nasceu sequelado" etc. Falamos de termos médicos/psicológicos como se falássemos de uma receita de bolo.
O discurso que sustenta estas posturas tem nome e endereço conhecidos: a indústria farmacêutica. Ou você acha que as matérias de capa em revistas como a Veja (e outras) falando de remédios milagrosos são obra do acaso?
A indústria das drogas permitidas é uma das mais rentáveis do mundo. Perde apenas para a de armas e a de cocaína. E não sejamos ingênuos: não há bondade alguma nela.
Os médicos que são leitores deste blog certamente estão pensando "tudo bem, mas há drogas necessárias para os tratamentos...". É claro que estamos de acordo nisto. Mas quando falamos em drogas psiquiátricas a conversa é outra. E se os pacientes que tomam estas drogas são crianças e adolescentes a situação é bem mais séria. Nos Estados Unidos - que nós insistimos em imitar - já são algo como 500 mil crianças de 2 a 7 anos tomando antipsicóticos! Pare e pense neste número. 500 mil crianças pequenas. Eles são uma nação psicótica ou há um exagero na medicalização?
Existem casos (graves ou não) em que o medicamento é necessário, com certeza. Mas há uma imensidade de sintomas que fazem parte da existência, e necessitam muitas vezes mais a companhia de um bom amigo do que qualquer outra coisa.
Um fato é indiscutível. A indústria farmacêutica ganha muuuito com isto. E patrocina congressos médicos, cursos, universidades. É ética esta relação entre a indústria e os médicos? Muitos médicos e estudiosos afirmam categoricamente que não.
Uma destas pessoas lúcidas é a médica americana Marcia Angell. Reproduzo abaixo uma entrevista com ela publicada hoje na Folha de São Paulo.
É coincidência o fato de hoje ser o Dia do Médico. Mas, aproveitando a data, deixemos de lado as homenagens chatas. Há uma infinidade de médicos ruins por aí. Todo mundo já topou com eles. Não sejamos cínicos. Os bons médicos (e há alguns que são meus leitores) sabem que a valorização da medicina passa por outros caminhos. Um deles é chamar a atenção para este domínio do mercado sobre o ato de tratar e buscar a cura ou o alívio para alguém... Quando você chama a atenção para quem age equivocadamente, indiretamente lança um elogio para quem age de forma diferente.






Folha de São Paulo, 18 de outubro de 2011.

Estamos dando veneno para as crianças

MÉDICA ATACA INDÚSTRIA POR ESTIMULAR USO DE REMÉDIOS PSIQUIÁTRICOS PARA PACIENTES INFANTIS



A médica americana Marcia Angell, 72, ex-editora da revista especializada "NEJM" e autora do livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos"

CLÁUDIA COLLUCCI
DE WASHINGTON

Primeira mulher a ocupar o cargo de editora-chefe no bicentenário "New England Journal of Medicine", a médica Marcia Angell já foi considerada pela revista "Time" uma das 25 personalidades mais influentes nos EUA.
Desde 2004, Angell, 72, é conhecida como a mulher que tirou o sossego da indústria farmacêutica e de muitos médicos e pesquisadores que trabalham na área.
Naquele ano, ela publicou a explosiva obra "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos", que desnuda o mercado de medicamentos.
Usando da experiência de duas décadas de trabalho no "NEJM", ela conta, por exemplo, como os laboratórios se afastaram de sua missão original de descobrir e fabricar remédios úteis para se transformar em gigantescas máquinas de marketing.
Professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Harvard, Angell é autora de vários artigos e livros que questionam a ética na prática e na pesquisa clínica. Tornou-se também uma crítica ferrenha do sistema de saúde americano.
Tem se dedicado a escrever artigos alertando sobre o excesso de prescrição de drogas antipsicóticas, especialmente entre crianças. "Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade", diz ela.
Mãe de duas filhas e avó de gêmeos de oito meses, ela diz que recebe muitos convites para vir ao Brasil, mas se vê obrigada a recusá-los. "Não suporto a ideia de passar horas e horas dentro de um avião." A seguir, trechos da entrevista exclusiva que ela concedeu à Folha.



Folha - Houve alguma mudança no cenário dos conflitos de interesses entre médicos e indústria farmacêutica desde a publicação do seu livro?
Marcia Angell - Não. Os fatos continuam os mesmos. Talvez as pessoas estejam mais atentas. Há mais discussão, reportagens, livros, artigos acadêmicos sobre esses conflitos, então eles parecem estar mais sutis do que eram no passado. Mas é claro que as companhias farmacêuticas sempre encontram uma forma de manter o lucro.

E os pacientes? Algumas pesquisas mostram eles parecem não se importar muito com essas questões.
Em geral, os pacientes confiam cegamente nos seus médicos. Eles não querem ver esses problemas.
Além disso, as pessoas sempre acreditam que os medicamentos sejam muito mais eficazes do que eles realmente são. Até porque somente estudos positivos são projetados e publicados.
A mídia, os pacientes e mesmo muitos médicos acreditam no que esses estudos publicam. As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: "Você precisa perder peso, fazer mais exercícios". E a pessoa diz: "Eu prefiro o remédio".
E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso.
Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base.

A sra. tem escrito artigos sobre o excesso de prescrições na área da psiquiatria. Essa seria hoje uma das especialidades médicas mais conflituosas?
Penso que sim. Há hoje um evidente abuso na prescrição de drogas psiquiátricas, especialmente para crianças.
Crianças que têm problemas de comportamento ou problemas familiares vão até o médico e saem de lá com diagnóstico de transtorno bipolar, ou TDAH [transtorno de déficit de atenção e hiperatividade]. E é claro que tem o dedo da indústria estimulando os médicos a fazer mais e mais diagnósticos.
Às vezes, a criança chega a usar quatro, seis drogas diferentes porque uma dá muitos efeitos colaterais, a outra não reduz os sintomas e outras as deixam ainda mais doentes.
Drogas antipsicóticas estão claramente associadas ao diabetes e à síndrome metabólica. Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade.
Pessoas que acham que isso não é assim tão terrível sempre argumentam comigo que essas crianças, em geral, chegaram a um estado tão ruim que algo precisa ser feito. Mas isso não é argumento.

Hoje, fala-se muito em medicina personalizada. Na oncologia, há uma aposta de que drogas desenvolvidas para grupos específicos de pacientes serão uma arma eficaz no combate ao câncer. A sra. acredita nessa possibilidade?
Para mim, isso é só propaganda. Não faz o menor sentido uma companhia farmacêutica desenvolver uma droga para um pequeno número de pessoas. E que sistema de saúde aguentaria pagar preços tão altos?

Algumas escolas de medicina nos EUA começaram a cortar subsídios da indústria farmacêutica e de equipamentos na educação médica continuada. No Brasil, essa dependência é ainda muito forte. É preciso eliminar por completo esse vínculo ou há uma chance de conciliar esses interesses?
Deve ser completamente eliminado. Professores pagam para fazer cursos de educação continuada, advogados fazem o mesmo, por que os médicos não podem? A diferença é que você não precisa ir a um resort no Havaí para ter educação médica continuada. É preciso pensar em modelos de capacitação mais modestos. E, com a internet, todos os países, mesmo os pobres ou em desenvolvimento, podem fazer isso. A educação médica não pode ser financiada por quem tem interesse comercial no conteúdo dessa educação.

15 outubro 2011

Das alegrias de ser professor

Uma das mensagens recebidas hoje, neste "Dia do Professor":

"Olá meu querido mestre!!!! Quanto tempo né??? Gostaria de agradecer a ti por muitas condutas, que hoje direciono em minha vida, você que nos falava de política, do big bang, será que ele de fato ia acontecer?? Você que acreditava que eu era capaz, embora eu mesma duvidasse muitas vezes disso. Hoje busco entender a política que você nos falava tanto, para tentar mudar as várias nuances negativas, que me vejo obrigada a conviver. Enfim, obrigada pela parte de mim que pensa, questiona e revigora as atitudes para que o mundo um dia possa melhorar, você fez e faz parte da minha história. Obrigada!!! Um grande beijo."

Ângela Camargo


[creio que o "big bang" que a Ângela cita deva ser o tal "bug" do milênio, que aconteceria na virada do ano 2000 - que sequer era início de milênio]

09 outubro 2011

Palavreio

Palavreio é o nome do CD de Leandro Maia. Se você não conhece, chegou a hora de conhecer.
Parece um lugar comum das pessoas de mais de 30 ou 40 anos a ideia de que "música boa se fazia antes", "hoje falta criatividade". As pessoas se limitam às informações da grande mídia, dos seus artistas de consumo e dos "alternativos" criados a pão-de-ló.
Sim, hoje se faz muita música boa no Brasil. Mas como os grandes meios estão dominados pela indústria de cultura, você precisa procurar. Ouro não brota na terra.

"Palavreio" de Leandro Maia é uma destas pérolas da canção brasileira. É um CD, mas vai além. Também é um minilivro de poemas que mais parecem um pequeno tratado sobre a canção. Senão, olha só:

Escreveu
Não leu
Palco meu

Trata-se de um projeto que começa bem já pela capa, que reproduz uma pintura rupestre. Talvez para dizer que o ser humano é, também, antes de tudo um artista. Como fez sucesso no ano em que foi lançado (2008)e ganhou vários prêmios, imagino que possa estar esgotado.
O disco pode ser baixado no próprio site do artista: www.leandromaia.com.br ou no blog "Um que tenha". Mas, se você deseja presentear alguém especial, melhor mesmo é comprá-lo. É um belo trabalho, onde a palavra recebe o tratamento que merece. Musicalmente impecável, reunindo uma turma de feras como Marcelo Delacroix, Michel Dorfman e outros/as.

Segundo Leandro Maia, "a canção é uma forma de pensar à brasileira". E um coro fulminante inicia assim o disco:

Eu já corri o mundo inteiro
Eu tenho pé de cantador

Me convidaram pra nascer
me propuseram este falar
me obrigaram a crescer
e esquecer do meu lugar
mas resolvi desesquecer
me permiti me celebrar

...

desaprendi a obedecer
agora tem que me escutar...


Então o tema de casa de hoje é esquecer (como dizia pros meus alunos na primeira aula de História na 5ª série). Esquecer a ideia batida de que foram-se os bons artistas. A arte está aí. Mas precisamos estar de ouvidos atentos.

05 outubro 2011

Primaveras II

“Meus pais se conheceram num passeio da escola, aonde então venceram um concurso de beijos e ficaram juntos. Tiveram inesperadamente (o que não esperavam) uma grande família. Nasci no verão, sinto borbulhar em mim como na estação, o sangue que mal pode esperar para lançar na vida o primeiro grito de estação. Estou na primavera, mas, algum dia me libertarei e darei o sol...”


Escrito por uma aluna querida, então com 12 anos de idade. Hoje ela tem vinte e tantos e é mãe.
Nasceu o sol?

03 outubro 2011

De publicilismos e jornalidades

Pior que propaganda besta com a Gisele Bündchen, só mesmo o comentário de João Pereira Coutinho na Folha (falando sobre a propaganda machista protagonizada pela modelo). O cara é pago pra escrever, lá de Portugal, e se limita a repetir o jargão de que a publicidade "é assim mesmo".
Que a publicidade é o lugar privilegiado da mentira todo mundo sabe. A ARMA do negócio, porque no negócio não há alma nenhuma. Daí concluir que devemos engolir qualquer porcaria que nos lançam é outro papo. Por estas e outras não gosto do "olho de vidro" (como bem cunhou a Marcia Tiburi). Você liga a TV e vem aqueles sujeitos berrando (do tipo Casas Bahia), os carros velozes que levam qualquer um ao paraíso, ou um grupo de babacas sentado bebendo cerveja e falando alguma bobagem sobre a mulher gostosa que passa. Repetição e mais repetição de fórmulas pra lá de antigas.
Os jornalistas adoram babar o que chamam de "genialidade" dos publicitários. Não é de admirar. Salvo raras exceções em ambos os grupos, uns e outros vivem da ignorância alheia. A "genialidade" da publicidade brasileira é alicerçada na pouca formação e na infantilização de boa parte da população.
Isto sem falar dos grandes esquemas de corrupção cada vez mais comuns (envolvendo campanhas publicitárias superfaturadas que financiam campanhas eleitorais). Mas este é um tema proibido.

O jornalismo brasileiro anda tão miserável, que sequer trabalha com a possibilidade da crítica. Os jornalistas, em geral, se comportam apenas como os empregadinhos que repetem o discurso do patrão. Imagino os donos de jornais como sujeitos entediados, rodeados do famoso cordão dos puxa-sacos. Deve ser chato.
Se você ouve um já ouviu todos. Fascinados pelo meio e esquecidos da mensagem.

No Rio Grande do Sul são os radialistas chatos (por aqui temos o hábito de ouvir rádio). Para cada notícia, dez comentários. Os caras leem dez linhas sobre um assunto (recolhidas no Google) e já saem fazendo discursos. 99% das vezes - que coincidência - são falas condenando quem se manifesta, quem abre a boca, quem não repete aquilo que o chefe mandou dizer. Nós professores somos grandes vítimas, pois sempre há um comentarista disposto a dizer qualquer coisa sobre a educação ou como devem ser as nossas aulas. Eles não sabem NADA sobre educação, novamente em 99% das vezes. Certa vez desafiei um deles a trocar de lugar comigo por uma semana. Eu trabalharia na rádio e no jornal, ele daria minhas aulas. Uma semana apenas. Sei que teria muitas dificuldades, mas conseguiria produzir reportagens e veiculá-las. Entretanto, tenho minhas dúvidas se ele daria conta da tarefa de ensinar 10 turmas de adolescentes de periferia. Aliás, desconfio que aqueles discursos contra os professores iriam desaparecer em menos de um período (da aula que ele não conseguiria dar).

A última foi aquela "polêmica" tosca inventada pela própria mídia sobre o livro de Português. Nenhum deles leu o livro. Um ficou comentando o comentário do outro (Um amigo meu diria: "pura punheta"). E repetindo aquele discurso moralista que até poderia fazer algum sentido se eles realmente acreditassem no que estão falando.

Também gostam de condenar genericamente "os políticos". Falar mal dos políticos virou esporte. Só que, quando estão frente a frente com um deputado ou ministro (político, então) derramam-se em elogios e paparicações. Lamentável.

Por estas e por outras me informo mais pela Internet mesmo. E parece que muuuita gente também.
E ficamos aqui, eu e o Érico, escutando música e brincando.
Aprendo mais com meu filho que ainda nem sabe falar do que aprenderia com os sábios comentaristas acomodados nas rádios e na ditadura do olho de vidro.

02 outubro 2011

Sofia conversa com deus

Texto de minha aluna Érica, da turma C14, criando uma sequência para a introdução de "O mundo de Sofia" de Jostein Gaarder.


Sofia havia recebido outra carta, mas dessa vez foi diferente, ela viu quando uma criatura esquisita com olhos esbugalhados, sorriso sarcástico, uma cartola verde enorme, aproximadamente 1,45m de altura, largou a tal carta no correio e saiu correndo. Sofia achou que estava louca pois nunca havia visto durante os seus 14 anos tamanha loucura, mas foi até o correio e pegou a carta, então abriu e leu:
“Sofia, sei que pode achar loucura isso tudo, mas entenda que eu quero o seu melhor. Meu amigo Sócrates lhe entregou essa carta por um único motivo...se você quer descobrir qual, simplesmente passe o dia sem brigar, sem gritar, sem se preocupar, e quando for dormir relaxe, pense em coisas boas, memórias gratificantes, então saberá o motivo pelo qual lhe enviei tantas cartas com perguntas. Ass: /=/=/”
A garota achou esquisito, mas passou o dia sem gritar, brigar, sem se preocupar. Mas na hora de dormir ela realmente teve a tal surpresa, sentiu como se seu corpo estivesse se levantando sem ela poder controlar, flutuou com a sua alma bem alto até sentir algo lhe puxando para baixo com força. Então lembrou quando andou de bicicleta pela primeira vez, os machucados, as risadas... Finalmente chegou ao seu destino, uma sala branca com uma mesa enorme totalmente vazia. Sofia sentou-se na cadeira à espera de alguém, foi então que viu um homem branco com barba e roupas velhas, vindo em sua direção, não soube como agir, mas tentou falar:
-Quem é o senhor?
-Sou Deus, o Pai de todos vocês lá embaixo!
-É sério? - falou gaguejando entre dentes.
-Sim.
-Bom, mas se você é Deus...tem todas as respostas que precisa, por que me mandou cartas com perguntas se você já tem todas as respostas?
-É, sim, talvez eu tenha todas as respostas, mas gostaria de ver isso a partir do ponto de vista de uma garota, é ruim criar algo e não saber o que se passa dentro de sua cabeça, não saber se continua da mesma forma!
-Eu não sei o que dizer... - falou Sofia.
-Não diga nada criança, volte ao seu corpo. Viva, ame, lute, grite por todos que você ama, é só isso que eu quero que você faça, eu sei que você é forte o bastante para alertar todos sobre as suas forças interiores e o poder que todos vocês têm. Vocês são divinos, espalhe isso e seja feliz!
Como num piscar de olhos Sofia acordou. Ela se lembrava de tudo o que ouviu e tudo o que viu. No final do dia Sofia sentou em sua cama e pensou no que havia presenciado, foi então que percebeu que ela podia mudar a sua vida se acreditasse em todas as palavras que Deus disse. Um ano depois Sofia escreveu uma carta para Deus que dizia:
“Você é divino, você tem todas as armas que precisa, então lute por nós, porque isso tudo se tornou um inferno.
(em resposta a todas as suas perguntas)”
Érica Sena de Lima

23 setembro 2011

O infinito de pé

O infinito de pé

André Abujamra


O infinito de pé são dois biscoitos
O infinito de pé é o número oito
O infinito de pé dois planeta colado
O infinito deitado um óculos quebrado

O infinito de pé duas bolas de sorvete
Um casal de namorado na moto com capacete
Boneco de neve, dois vinhos na adega
Farol de milha de noite quase cega

O infinito deitado olhos de coruja
Dois seres humanos fazendo amor
O infinito de pé é um autorama
Duas pulgas malabaristas no meu cobertor

O infinito deitado cano duplo de espingarda
São os raios de sol nos olhos da namorada
Dois salva vidas à devida no oceano
É a linda cauda da baleia afundando

Oitocentos anos infinito lado a lado
Só que um está de pé e o outro deitado
Buraquinhos do nariz as asas da borboleta
Dois irmãos gêmeos no carrinho de mãos dadas com chupeta

O infinito tá de pé o infinito tá

O infinito deitado janelinha de avião
É o símbolo da paz passarinho a minha mão
É o laço do cadarço para o tênis amarrar
É o beijo na sua boca para o amor alimentar

Ouro sem u e sem r
O infinito é o bigode do francês Pierre
Oco sem c ovo sem v
O infinito é o amor que eu sinto por você

Dois mil e um sem o dois e sem o um
O infinito é uma dupla de sushi de atum
É o reflexo do sol no mar
É a sinuca do bilhar

O infinito de pé é um brinde na taça
Dois buracos na cueca devorados pela traça
Os pneus da bicicleta subindo a ladeira
São os seios da Brigite pra fora da banheira

Dois cocos, duas laranjas, bola de gude bola de meia
O infinito é Jesus Cristo repartindo o pão para os apóstolos na Santa Ceia
Nem todo infinito tem forma pra mim
Einstein Rodchenko Picasso e Tom Jobim
O infinito tá de pé o infinito tá

O infinito é infinito
O infinito é o amor
O infinito nunca acaba porque nunca começou

16 setembro 2011

A saudade é uma cadeira vazia

Me diz meu amigo que a saudade é uma cadeira vazia. Você olha e ela está ali, ao lado, como a lhe dizer de algo ou de alguém. Saudade é uma palavra estranha de tão bonita. Ela fala de tantas coisas, de tantos sentimentos, que se perguntar o que significa a pessoa fica gaguejando e não consegue dizer. Saudade é uma palavra que não cabe. Então se diz que não há lugar pra tanta.
A saudade é tão brasileira que não tem tradução. Quer dizer, não tinha. Os ingleses andaram inventando de colocar ela em seus dicionários. Mas continuam sem ter o prazer e aquele gostinho da coisa dita e repetida em alto e bom som. Uns chamam a saudade de parafuso enferrujado, que quanto mais enrosca menos vai. Outros colocam-na no terreno impróprio e improvável do vazio. Eu prefiro representá-la como meu amigo: numa cadeira vazia, ali ao lado. Esperando aquela coisa, sensação, momento ou pessoa que talvez nunca virá sentar.
Nos porões dos navios negreiros a saudade vinha tremendo de frio e de medo. Amontoados como coisas, homens e mulheres procuravam no úmido e no escuro imagens luminosas das terras de onde acabavam de ser roubados. Em alguns lugares, os governantes que os vendiam faziam com que passassem em torno de troncos na beira do mar. Acreditavam que ao passar eles perdiam a memória. Assim, os inescrupulosos negociantes de gente pensavam aliviar a sua culpa.
Mas a memória da gente não pode ser facilmente apagada. E entre mortos e desesperados, dos navios tumbeiros para as praias brasileiras vieram ritos e cores. Jeitos e sonhos que mudaram este outro lado do mundo, com uma saudade maior que a distância entre este assustador pedaço de mundo e a mãe África do qual foram separados. Dos que sobreviviam a estas viagens diabólicas, muitos morriam de tristeza. “Banzo” era o nome que se dava a esta morte de tanta saudade de casa.
Já os portugueses, que ganharam a fama pela palavra, vieram cantá-la em seus violões e cantos melancólicos. Sob a janela real ou imaginária da amada, ou debaixo das copas de enormes árvores reuniam-se para tocar e cantar. Também eles falavam em sua terra distante, e nos perigos do grande monstro marinho. Mas, com certeza, é bem mais fácil sentir saudade quando a gente não é escravo.
Saudade vai, saudade vem. Quero dizer...tempo vai, tempo vem, e começamos a cantar este nosso sentimento. A saudade praticamente tomou conta da música brasileira. De início meio escondida, porque gostava mesmo era do violão. E o violão, como vocês sabem, era discriminado e quase proibido. Quando ele desceu do morro e saiu das sombras foi um assombro só. Invadiu os salões, não teve vergonha nas ruas. Era melancolia e tristeza misturadas com a alegria de ter vivido aquilo que se cantava. Nunca mais a música foi a mesma.
Saudade que se bebe em longos goles para amaciar a garganta e soltar a voz. Saudade de criança, onde toda uma vida cabe num dia que nunca acaba. Saudade que levanta antes do sol pra preparar o café da solidão. Saudade queimada nas pontas dos dedos. Saudade de um certo gosto, de um cheiro especial que só se sente num certo lugar ou ao lado de uma certa pessoa querida.
Como é difícil dizer o que é a saudade, esse sentimento de que sempre está faltando alguma coisa. Essa estrada longa e envolta em bruma, que começa e termina não se sabe bem onde dentro de nós. Meu amigo, acostumado à vastidão dos campos e dos ventos que neles galopam soltos, diz que a saudade é uma cadeira vazia que range. Talvez sejam os sons dos fantasmas que nos povoam, que nela sentam e ficam rindo.
De tanto falar em saudade me veio a lembrança de uma gargalhada que anunciava a madrugada. E certos cabelos longos, que de tão belos podem ser adorados como objeto de devoção. Mas vamos parando por aqui. Que cada leitor ou leitora agora tome um tempinho, e abra sua caixa de saudades. E deixe que elas venham, e deixe que elas falem.

Elenilton Neukamp
[Trecho de "A Caixa de Perguntas e outras histórias de aprendiz", que está em busca de editora para ser publicado]

13 setembro 2011

Indignado

O "Não entendi" é sintomático. É onde esquerda e direita se encontram no Brasil. Na falta de leitura, de cultura, de formação no sentido mais amplo. Por isto as críticas irracionais contra figuras como o Rolim e tantos outros. Pensar incomoda. E se você não concorda com as idéias do outro, mais fácil é desqualificar. Argumentar dá trabalho.
O Tom Zé diz tudo: "Defeito Burrice", anda na esquerda e anda na direita, e não precisa de data comemorativa - porque a burrice é diariamente gloriosamente festejada!

Agora você critica o governo e lhe taxam de "conservador". Você critica o Sarney e os seus amigos petistas dizem que você é do "Pig", mancomunado com a mídia de direita.
E quando era o PT que criticava o Sarney? Eu estou delirando, ou aquele "Sarney" que chamávamos de ladrão nas passeatas do partido não era o mesmo? Quem é que mudou, afinal?
Isto apenas para usar um pequeno exemplo.

Mas cuidado. Eu faço parte de uma grande conspiração de direita que pretende derrubar essa maravilha de governo revolucionário no Brasil, que está unindo as forças mais avançadas da Nação (juntamente com Collor, Sarney, Renan Calheiros etc etc etc). Ah, e tem o PMDB, sempre preocupado com o povo trabalhador. E o PP, que nunca apoiou a ditadura, porque nem deve ter acontecido ditadura nenhuma...isso deve ser alguma armação da grande mídia para desestabilizar, criar intrigas.
(Só debochando mesmo).

Ah, por favor gente! Onde foi que vocês deixaram o senso crítico?






[Comentário sobre uma entrevista de Marcos Rolim no site Sul 21, onde um leitor assinou como "Não entendi"]

11 setembro 2011

As torres caíram

As torres caíram. No tabuleiro complexo do jogo de poder do mundo algo perigoso ficou no ar. E não são ruínas que nos assustam. E não são todas aquelas mortes a única das tragédias. O trágico é a ausência de regras no jogo. Mesmo frágeis, antes elas serviam ao menos para limitar um pouco a força do grande jogador. Agora a mão pesada do Império joga para longe as peças que sobraram, e o próprio tabuleiro começa a perder o sentido. Acabou o jogo?
Minha mãe me chamou e disse que estava acontecendo algo estranho, que eu ligasse a TV. Ao vivo todo o planeta assistiu aos ataques. Incrédulo, liguei para meus amigos e amigas mais próximos para ter certeza de que estava acordado e de que aquilo tudo era mesmo verdade. Não faltaram vozes a profetizar o início do fim da dominação americana. Ingênuos. Tudo o que os fascistas sempre precisam é de um inimigo, mesmo que imaginário.
11 de setembro de 2001. Começava drasticamente o século XXI.

Estas palavras aí acima escrevi por aqueles dias. E o que mudou de lá para cá?
Os americanos continuaram invadindo países e inventando guerras para mover sua poderosa máquina industrial. Invadiram o Iraque, o Afeganistão novamente.

Mas o 11 de setembro aqui na América Latina é marcado pelo golpe no Chile. Também patrocinado pelos Estados Unidos, como no Brasil em 1964.
Estes golpes e atentados contra a soberania dos países também ajudam a explicar o onze de setembro de 2001. O terrorismo não surgiu do nada nem tampouco caiu do céu.

Outro dia um aluno me surpreendeu, perguntando se aquelas cenas das torres caindo eram mesmo verdade ou se tudo não passava de efeitos especiais. Impressionante a pergunta, em seu sentido literal e simbólico.
Os americanos, se não tivessem o olhar paralisado no próprio umbigo, poderiam se fazer igualmente muitas perguntas.
Porém, aos milhares, foram para as ruas comemorar a morte de Bin Laden. Sociedade estranha esta, que prega os direitos humanos - para os outros. Fossem um pouquinho mais inteligentes teriam capturado seu inimigo vivo e assim desbaratado sua rede. Mas era necessário criar o mito, atirando-o ao mar. Um inimigo, mesmo que virtual, sempre é uma possibilidade de novas guerras e lucros.

07 setembro 2011

Fala Buñuel

"Hoje, a crer no que me dizem, acontece com o amor o mesmo que com a fé em Deus: tende a desaparecer - pelo menos em certos meios. É considerado tacitamente um fenômeno histórico, algo como uma ilusão cultural. É estudado, analisado - e, se possível, curado.
Protesto. Não fomos vítimas de uma ilusão. Mesmo que para alguns pareça difícil de acreditar, nós amamos de verdade."

Luis Buñuel,

em 'Meu último suspiro', pág. 211 (Ed. Cosacnaify).

02 setembro 2011

Uma foto




Protesto por segurança, dentro do desfile da "semana da pátria", no bairro Restinga em Porto Alegre/RS (02/09/2011)

30 agosto 2011

Nós e os animais

"Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida. O ser inteiro do animal se lança nessa luta, sem nenhuma reserva. Quando o senhor diz que falta a essa luta uma dimensão de horror intelectual ou imaginativo, eu concordo. Não faz parte do modo de ser do animal experimentar horrores intelectuais: todo o seu ser está na carne viva.
Se não o convenci foi porque faltaram às minhas palavras, nesta ocasião, o poder de despertar no senhor a inteireza, a natureza não abstrata e não intelectual do ser animal. É por isso que o incito a ler os poetas que devolvem à linguagem o ser vivo, palpitante; e se os poetas não o comovem, sugiro que caminhe lado a lado com o animal que está sendo empurrado pela rampa na direção do seu carrasco.
O senhor diz que a morte não importa para um animal porque o animal não entende a morte. Isso me lembra um dos filósofos acadêmicos que li para preparar minha palestra de ontem. Foi uma experiência deprimente...Se isso é o melhor que a filosofia humana pode oferecer, eu disse a mim mesma, eu preferia ir viver entre cavalos."

J.M. Coetzee
em "A vida dos animais", Companhia das Letras (2003)

27 agosto 2011

A história de Severina

Recebi por e-mail esta reportagem, com a história e o depoimento desta mulher. Dispensa comentários.




'Minha mãe me levou pra ele', conta mulher abusada pelo pai em PE

FÁBIO GUIBU
DE RECIFE

A agricultora Severina Maria da Silva, 44, foi absolvida pela Justiça de Pernambuco anteontem (25).

Ela era acusada de ter encomendado a morte do pai, Severino Pedro de Andrade, de quem engravidou 12 vezes e teve cinco filhos durante os 29 anos em que foi vítima de abusos sexuais por parte dele.

O júri popular acatou a tese da defesa, de "inexigibilidade de conduta diversa", ou seja, de que a ré não poderia ser condenada porque foi coagida desde a infância e agiu sem ter outra opção.

Severina, que vive na zona rural de Caruaru (136 km de Recife), começou a ser estuprada aos nove anos de idade e, em 2005, contratou dois homens para matar o pai, ao perceber que ele assediava uma de suas filhas-netas.

No julgamento, até a Promotoria pediu a absolvição da acusada. Os dois assassinos, Edilson Francisco de Amorim e Denisar dos Santos, foram presos, julgados e condenados. Eles cumprem pena em Caruaru.

VEJA O DEPOIMENTO DE SEVERINA:

*

Eu nunca estudei, nunca tive amiga, nunca arrumei um namorado na vida, nunca saí para ir a uma festa. Até os 38 anos, vivi assim, e foi assim até quando me desliguei do meu pai, no dia em que ele foi morto.

Meu pai não deixava eu e minhas irmãs fazermos nada. Toda a minha vida eu sofri. Comecei a trabalhar na roça ainda menina, com seis anos, arrancando mato.

Aos nove, fui com meu pai para o roçado. No caminho, ele me levou para o mato, amarrou minha boca com a camisa, me jogou de cabeça e tentou ser dono de mim. Eu dei uma pezada no nariz dele, e ele puxou uma faca para me sangrar.

A faca pegou no meu pescoço e no joelho. Depois, ele tentou de novo, mas não conseguiu ser dono de mim.

Em casa, contei para minha mãe e ela me deu uma pisa. Fiquei sem almoço.

À noite, minha mãe foi me buscar e me levou para ele. Me botou de joelhos na cama, tampou minha boca com o lençol e pegou nas minhas pernas para ele pular em cima. Eu dei um grito e depois não vi mais nada.

No outro dia, fui andar e não pude. Falei: "Mãe, isso é um pecado, é horrível". E ela: "Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai."

A partir daquele dia, três dias por semana, ele ia abusando de mim. Com 14 anos, eu engravidei. Tive o filho, e ele morreu. Eu tive 12 filhos com meu pai. Sete morreram. Seis foram feitos na cama da minha mãe. Dormíamos eu, pai e mãe na mesma cama.

Um dia, uma irmã minha disse que estava interessada em um namorado. O pai quis pegar ela, disse que já tinha um touro em casa, e que não era para ninguém andar atrás de macho lá fora.

Eu mandei minha mãe correr com minha irmã, e ele correu com a faca atrás. Depois disso, minha mãe não ficou mais com ele. Foram todos embora para Caruaru, para a casa do meu avô. Ela e as minhas oito irmãs.

Só ficamos eu e meu pai na casa. Eu tinha 21 anos, e ele sempre batia em mim. Tentei me matar várias vezes, botei até corda no pescoço.

Os filhos nasciam e morriam. Os que vingavam foram se criando. Minha filha estava com 11 anos quando ele quis ser dono dela. Falou assim: "Nenê está engrossando perninha? Tá saindo peitinho, enchendo a melancia? Tá bom de experimentar, que é para ir se acostumando." E tacou a mão nela.

Eu falei: "Seu cabra da peste, está escrito na minha testa que eu sou Maria-besta? Eu sou filha de Maria, mas besta eu não sou." E ele: "Rapariga safada, Maria era mulher para todo acordo. E tu, não tem acordo?"

Nessa hora, eu disse para ele: "Se você ameaçar a minha filha, você morre. Minha mãe aceitou, mas eu não." Meu pai me bateu três dias seguidos, deu um murro no meu olho que ficou roxo.

Na segunda, ele amolou uma faca e foi vender fubá [farinha de milho]. Antes, disse: "Rapariga safada, quando chegar, se você não fizer o acordo, vai ver o começo e não o fim."

Eu respondi: "Ô pai tarado da peste, se você ameaçar a minha filha, você morre." Ele foi para a feira e eu, para a casa da minha tia. Lá, mostrei meu corpo lapeado, o olho roxo, o ouvido estourado.

Meu pai tinha amolado uma faca de 12 polegadas na segunda-feira à noite e me mataria na terça se eu não fizesse o acordo. Foi quando paguei para matarem ele.

Peguei um dinheiro que tinha guardado, fui para Caruaru e, na casa do Edilson, paguei R$ 800 na hora.

Quando o pai chegou, o Edilson veio acompanhando. Foi quando acabou a vida dele. O rapaz arrumou um amigo e fez o homicídio. A faca que ele havia comprado, interessado na minha vida, ele morreu com ela.

A minha filha, a filha dele, eu salvei. Quem é pai, quem é mãe, dói no coração. Levar a sua filha para a cama, abrir os quartos dela, como a minha mãe fez, e o pai ir para cima da filha? Eu, como passei por isso, jamais iria aceitar.

Antes disso, eu ainda procurei os meus direitos, mas perdi. Há uns 15 anos, fui na delegacia, mas ouvi o delegado falar para eu ir embora e morar com o velhinho (o pai), que era uma boa pessoa.

O homicídio foi no dia 15 de novembro de 2005. No cemitério, já tinha um carro de polícia me esperando. Na cadeia, passei um ano e seis dias. Fiquei no castigo, depois fui para uma cela.

Depois do julgamento, fiquei feliz. Antes, pensava na liberdade e na cadeia ao mesmo tempo. Agora, quero viver e ficar com meus filhos. Quero que minha história sirva de exemplo, para que os pais e as mães procurem respeitar os seus filhos, ser amigos deles. A gente é pobre, mas pobreza não é desonra. Desonra é o cara fazer do próprio filho um urubu.

A partir de hoje eu quero é viver, porque tenho muita coisa para aproveitar pela frente. Tenho a liberdade e os meus filhos comigo.





20 agosto 2011

Temos guardado um silêncio...

Um dos primeiros livros que comprei com meu próprio dinheiro, quando tinha meus 14 ou 15 anos, foi "As veias abertas da América Latina" do Eduardo Galeano. Como vocês podem ver, já comecei tocando direto na ferida.
Ele continua sendo um dos grandes livros necessários para entender nosso continente. Assim como o impressionante "Cem anos de solidão" do García Marquez (que acabei de reler há alguns dias).
Mas não venho falar de livros, porque senão não paro...
Lembrei do "veias abertas" porque há uma epígrafe nele que nunca mais saiu de minha memória, desde aqueles dias em que o li. E ela volta de tempos em tempos, para me incomodar com a sua insistência em não perder a atualidade:

"...TEMOS GUARDADO UM SILÊNCIO BASTANTE PARECIDO COM A ESTUPIDEZ..."

18 agosto 2011

Receita de paciência

Uma papinha reforçada pro bebê (acabo de fazer):

Inhame
Aipo
Alho-poró/alho comum (pouco)
Moranga cabutia
Salsa graúda (muito)
Cebolinha (pouquinho)
Cenoura (pouquinha)

Tudo orgânico.

Uma boa panela e fogo brando.

Preparo:
Juntar tudo e ir mexendo, com colher de pau.

Enquanto eu cozinho e o fogo arde, vou tentando digerir, ruminar, aplacar a dor.
Só nunca dói existir pra quem desistiu.
Na alquimia das panelas tentando encontrar a "ardente paciência" que anunciou um dia o poeta Rimbaud, diante das cidades fabulosas que ele teve a sorte de não conhecer.
E na alegria de fazer a comida do meu filho vou inventando sentidos pra insistir no meio desta indiferença e neste tempo tosco que me coube viver.


Outro dia sonhei um sonho alucinante, cinematográfico. Paisagens, viagens, gentes e cliques fotográficos. Acordei fascinado e contente, disposto a sair contando para todos minha experiência. Não consegui.
O sol levantou e ardeu todo o dia, mas todos estavam dormindo.


Na outra manhã uma imagem triste. Um menino com ar decepcionado apontava o dedo para um grupo de adultos que falavam alto e sentavam em círculo.
"Vocês são um bando de cagões", foi o que ele disse. E antes que eu pudesse tentar alguma explicação virou-se e foi embora.

Quieto dentro do ônibus silencioso encontrei-o. Ele logo entendeu que eu não o havia traído. Quando desci chovia.
Eu e o menino chegamos molhados.
Mas não foi por covardia nem por indiferença que andamos os dois cabisbaixos até em casa.
Se baixamos a cabeça foi por causa da chuva. Aquela chuva da manhã triste que insistiu em nos fazer companhia.

17 agosto 2011

O mais difícil é dizer sim

Samba de uma nota só.
Sigo insistindo em minha escola para que façamos um protesto por segurança. Um aluno nosso foi assassinado, em uma lan house, às onze da manhã de uma sexta-feira. Vários tiros pelas costas, porque usava um boné parecido com alguém marcado pelos assassinos.

A classe merdia parece que perdeu mesmo o sangue. Nem a morte de um jovem inocente mobiliza mais as pessoas. Que decepção.

E se fosse um jovem de classe média alta?
Para um garoto da periferia sobram racionalizações, suspeitas, e um deus que silencia. Questão de classe.

Voltamos ao velho Marx. Polícia está aí para defender quem? Nas vilas reina o crime. Jovens acuados silenciam e se resignam. Alguns insistem e encaram um trampo e uma merreca de salário, outros procuram algum entorpecente - maconha, televisão, internet, álcool, igreja. "Uns dizem fim/uns dizem sim/e não há outros", já disse um jovem Caetano nos anos oitenta.

Uma aluna me escreve: "sou legal com meus amigos, mas em casa me tranco no quarto, choro, me corto, bagunço tudo...o que devo fazer?".

Todos os dias alguém me pergunta "o que que eu faço 'sor'?". E vamos procurando novas possibilidades. Não desistimos da vida, nós, os jovens de qualquer idade.
Pergunta que não se colocam aqueles que não fazem coisa alguma pela meninada.
O que fazer?
Perguntinha básica. A gente nem precisa de filosofia alguma pra se colocar. Só daqueles dois neurônios que restaram e estão pipocando em algum lugar lá dentro do coco.

Mas tá difícil pensar, neste mundinho besta onde a maior preocupação é se vão ou não vão conseguir trocar de carro no final do ano.

16 agosto 2011

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


Carlos Drummond de Andrade

14 agosto 2011


“Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos, e que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que me despeço de uma pessoa pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte surda caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.” Raul Seixas




Todos nós sabemos da nossa finitude, que a morte um dia chegará até nós. Mesmo quem acredita em outras vidas ou coisas do tipo, sabe muito bem que esta vida é única.
Quando morre uma pessoa velhinha quase sempre nos conformamos. Ficamos tristes, sim, mas fica sempre aquela sensação de que o tempo fez o seu trabalho. Vamos no velório, choramos, mas os comentários são sempre aqueles do tipo “descansou”, “agora ficou em paz”. Se a pessoa fumava ou bebia muito, se tinha uma doença grave, nos confortamos com a ideia de que talvez a morte tenha sido a melhor solução. Não suportamos o sofrimento, por isso achamos que a pessoa ao morrer se libertou daquilo que a fazia sofrer.

Mas, e quando é um jovem que morre?

Não há consolo possível diante de uma criança ou um jovem morto. Se era doente, se sofria de uma enfermidade terrível...mesmo assim é quase impossível suportar a ideia de que a vida seja abreviada, que acabe tão cedo.
Um jovem que morre assassinado é um absurdo ainda maior. Não cabem justificativas. Nenhuma filosofia explica.


Juarez Fernando Oliveira Weber, 15 anos, foi assassinado em 12 de agosto de 2011. Estava em uma lan house do bairro Restinga, na periferia de Porto Alegre/RS.

11 agosto 2011

A fúria dela

Hoje lembrei de uma certa madrugada gelada, lá pelos inícios dos anos 80.
Eu vivia em uma cidade a 30 km de distância de Porto Alegre.
Saímos eu e meu irmão mais novo às quatro da manhã de casa.
Ele precisava de um exame que só havia aqui. Chegamos lá pelas cinco e pouco
na fila de um postão do INPS (hoje SUS), próximo às margens do rio Guaíba. Frio gaúcho, de doer nos ossos.
Quatro horas de fila. Fila na rua. Fila nas escadarias do prédio. Fila no corredor. Fila na entrada do consultório. Meu irmão escarrando, o peito congestionado. Centenas de miseráveis como nós, histórias parecidas, dramas compartilhados.

Hoje também li na imprensa que a presidente do Brasil ficou chocada.
E furiosa também.
A fúria dela é porque viu na TV um sujeito algemado. Um ocupante de cargo importante em Brasília, acusado de corrupção. Ela acha isso um absurdo.

Pois eu, na minha estupidez de brasileiro nato, acho que as filas do SUS é que são um absurdo.
Viva as algemas nos braços sedosos dessa gente de mãos leves.

Se a presidenta quer ter uma experiência humana fudamental de fúria, que venha às quatro da manhã para uma fila do SUS.
Uma espera apenas, de algumas longas horas. E depois alguns meses de espera pela consulta com um médico especializado, que em geral vai olhar para a sua cara sem vontade e lhe atender com a delicadeza de um açougueiro.

Quem sabe uma fila do SUS na vida da presidente lhe faça muito bem.
Talvez ela até esquecesse dessa baboseira de copa do mundo...

08 agosto 2011

Giordano Bruno e a magia do infinito




Giordano Bruno (1548-1600) foi um grande filósofo italiano que viveu aquele período efervescente das grandes viagens marítimas e descobertas. Quando ele nasceu, para se ter uma ideia, os portugueses recém começavam a se instalar no litoral brasileiro. Haviam chego aqui menos de cinquenta anos antes.
Bruno cresceu em meio ao clima do Renascimento, da descoberta dos chamados novos mundos, da ascensão da burguesia. A arte como um todo passava a revalorizar o humano. As “ciências ocultas” e o esoterismo ganhavam adeptos e eram amplamente difundidas, embora proibidas. Os valores morais do cristianismo perdiam sua força e os detentores do poder, questionados, reagiam muitas vezes com uma violência bárbara. A revalorização da Antiguidade colocava em dúvida a filosofia dominante, baseada numa certa leitura de Aristóteles.
Mas é a teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543) que vai exercer grande influência no pensamento de Bruno, pois vinha confirmar o que ele já conhecia através da leitura de textos antigos: a Terra não é o centro do Universo, como queria a Igreja, e sim um planeta como qualquer outro girando em torno do sol.
Ele não concordava com a visão predominante em sua época, de que o universo seria formado por coisas fixas criadas por um Deus transcendente. E ia além, afirmando que Deus na verdade não é um “primeiro motor imóvel”, como queria Aristóteles. Nada no universo é imóvel e Deus faz parte de tudo, ou melhor, Deus é o Todo e nós humanos seríamos seres privilegiados porque nossa mente é idêntica à divina.

O universo pensado por Giordano Bruno é infinito, em constante transformação, repleto de outros mundos habitados como o nosso, como já havia escrito Lucrécio 50 anos antes de Cristo: “Tudo o que existe é ilimitado...”, dizia ele.
Desde o século VIII e especialmente a partir do século XII, circulavam pela Europa as obras de Aristóteles, trazidas pelos muçulmanos. Estas obras vão mexer com o mundo cristão. A razão começa a ser recuperada, assim como o interesse pelo raciocínio e a observação.
Mas a redescoberta de Aristóteles acaba tornando-se um dogma, e nos trezentos anos posteriores apenas se veriam repetições do que ele disse, e tudo o que escreveu tomou a validade de lei inquestionável. O mundo aristotélico, estático e rígido, era ideal para manter a segurança e a fé numa verdade inabalável (como queria a Igreja), uma verdade que servia para a manutenção de quem estava no poder.
Nesse meio tempo muitas vozes irão questionar tudo isso. Entre elas estão Roger Bacon e Guilherme de Ockham.
Giordano Bruno talvez seja a figura mais característica daquele período, pois era um verdadeiro eclético, que bebeu de todas as fontes do seu tempo. Ela tentava mostrar, com suas pesquisas em diversas áreas do conhecimento, que sobre uma mesma realidade pode-se ter pontos de vista diferentes e até mesmo conflitantes. Nos dias de hoje isto pode parecer até óbvio, mas naqueles dias podia custar a vida, como de fato aconteceu: Giordano Bruno foi queimado vivo pela Inquisição, em 17 de fevereiro de 1600.
Para Bruno o mundo era coberto de signos que necessitavam apenas ser decifrados. As verdades que estes signos, estas marcas contém, eram tão universais quanto o próprio Deus. Elas estão inscritas no universo. Um universo vivo, cheio de correspondências, animado e povoado de espíritos, que fala o tempo todo e sua fala pode vir tanto das estrelas como dos vermes da terra.
Ele olhava para o alto e via um espaço repleto de outros seres como nós, um universo homogêneo e inteligente, composto de mundos em correlação infinita, unidade de ser e de vida, extensão do ser divino uno e total.
No homem se reflete a inteligência do universo, e em sua mente encontra-se contraída e inteira a ordem do mundo. A dignidade do homem está em ser ele igual à unidade a qual pertence, e seu poder de conhecimento e participação provém da totalidade e existe para ela. A importância da magia na obra de Bruno se encontra neste ponto, pois é através dela que o homem alcançaria o seu máximo poder de conhecimento e desvendaria os segredos da Natureza, segredos esses que são o próprio conhecimento.
Bruno afirmava que a reforma moral se produz no céu. Quer dizer, da mesma forma que os astros receberam novas posições no céu, dentro do homem também deveriam ocorrer as mesmas transformações. É na mente que se processam todas as mudanças, por isso o homem é o lugar cósmico por excelência, centro de todos os centros, lugar onde convergem céus e terra.
Bruno pretendia realizar na mente das pessoas a mesma revolução que estava acontecendo na maneira de pensar o universo. Retirar a Terra do centro de tudo não poderia ser algo tão simples e deveria acarretar enormas transformações de pensamento.
Uma destas transformações refere-se a ideia de Deus. Deus está em todas as coisas, ele é a alma do universo. Decifrar a natureza é desencadear seu poder. Porque Deus, enquanto objeto de estudo da filosofia, é a própria natureza. Assim, como natureza, ele é a causa e o princípio do mundo. “Causa” no sentido de determinar as coisas que constituem o mundo, permanecendo distinto delas; “princípio” no sentido de constituir o próprio ser das coisas naturais. Deus, segundo Giordano Bruno, é “todo o infinito implícita e totalmente”.
Difícil de entender? Talvez. Mas o mais provocador, para a época, é o que ele deduz de tudo isso. O homem, para chegar a Deus, ao invés das orações e palavras convencionais teria que passar pela natureza e suas manifestações. A natureza seria a voz viva, a palavra original que fala a própria linguagem divina. Cabe aos homens então decifrá-la, acordando do sono do cristianismo.
Bruno leu os textos antigos, sobretudo os famosos escritos de Hermes Trismegisto e lançou sobre eles o olhar de seu tempo: a religião mágica egípcia seria a única religião verdadeira e teria sido corrompida e obscurecida pelo judaísmo e pelo cristianismo. Dentro dessa tradição Deus aparece como “sem forma e sem figura”, privado de essência.

Elenilton Neukamp

05 agosto 2011

Mundoente

Um terrorista cristão, num país pacato, se autoproclama um "cruzado", mata dezenas de pessoas num acampamento, lança bombas e ainda se acredita no direito de pedir a destituição do governo.

No país mais rico do planeta, o presidente tenta criar um embrião de sistema público de saúde e é "acusado" de socialista por um bando (numeroso) que se diz atacado em seu "direito de escolha".

Aqui na província de Porto Alegre alguém coloca veneno de ratos na merenda das crianças de uma escola. Será também um "cruzado" numa missão de limpeza planetária?

Enquanto isto, uma pá de gente que nunca reparou na lua cheia se prepara seriamente para o que crê ser o fim do mundo - o final de um ciclo no calendário (circular) maia.

Tá doente de que o nosso mundinho?



Elenilton Neukamp

Ai, que machões!

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Em matéria de política, o vereador Carlos Apolinário é um grande adepto do troca-troca.
Já esteve no PMDB, passou por um tal PGT, frequentou o PDT e hoje se abriga no DEM. Apesar disso, Apolinário é um homem de convicções. Acaba de conseguir aprovar o Dia do Orgulho Heterossexual, que o mobiliza desde 2005.
De 55 vereadores, 31 machões votaram a favor da data comemorativa -um monumento à homofobia chancelado pela casa legislativa da maior cidade do país. Não deixa de ser um exemplo triste mas também cômico de sucupirização explícita da Câmara Municipal de São Paulo.
Cada um dos marmanjos recebe por lá R$ 15.033 mensais de salário, mais R$ 16.359 de verba de gabinete para custear despesas várias. Somando-se a bolada com a verba dos assessores, cada vereador custa aos cofres públicos R$ 115 mil por mês.
Esses senhores gravitam em torno de seus interesses, à margem da formulação de políticas públicas ou do planejamento estratégico da cidade. Operam no balcão, muitos deles especialistas em criar dificuldades para vender facilidades.
Não lhes faltou tempo nem energia para aprovar esse disparate, de fazer corar Jece Valadão. Os heterossexuais não são uma minoria, nem quantitativa nem sob o aspecto comportamental. Não existe discriminação -piadas, humilhações, ameaças e agressões, físicas ou morais- a casais ou pessoas hétero.
Mas essa não é apenas uma lei inútil. Trata-se de uma iniciativa nociva, que, a pretexto de "resguardar a moral", atiça o preconceito, incorporando-o ao calendário oficial da cidade. Seria como inventar o Dia da Consciência Branca.
Ao reivindicar um direito que nunca esteve ameaçado, o que se visa é bombardear direitos inexistentes ou em gestação. Essa fascistada representa menos uma data a ser celebrada do que um passe livre para que nos demais 364 dias do ano o macho ameaçado pela própria homofobia possa exercitar as várias faces da sua intolerância.

Texto publicado na Folha de São Paulo, em 05 de agosto de 2011

03 agosto 2011

Bebês de luxo

No Rio Grande do Sul, onde moro,
foi inaugurada a primeira loja de luxo para bebês.
Mamães com casacos de pele na inauguração.
Papais com sorrisos engarrafados e bebês com nomes estrangeiros.

Pobres criancinhas.

E este nosso mundo maluco cada vez mais brega...


"São caboclos querendo ser ingleses" (Cazuza)

02 agosto 2011

Solidão

Na ilusão de esconder-se da solidão
os homens criaram máquinas
de fazer barulho.
E puseram-se a bater seus enormes tambores.
E amplificaram alto-falantes,
caixas sonoras, bumbos
e bombas.
Tontos, todos eles.
E eu.
A solidão é surda e muda.

10 julho 2011

Memória das casas

Minha avó tinha um sorriso que dizia sempre alguma coisa. E nunca houve coisa triste em seus sorrisos. Quando voltei à casa onde habitava a sua doçura fiquei procurando por seu sorriso. Em vão, graciosamente em vão. Estava lá a casa e suas memórias. Minha avó eu fui encontrar dentro de mim.

Fiquei pensando cá com a amada. Sobre o que habita nas casas da nossa memória. Meus alunos falam em fantasmas. Outros farejam cheiros no pano de prato molhado. Nossa memória gira como um caleidoscópio, jogando-nos como marionetes num sonho que nunca terá fim.

Para alguns seria impossível voltar até as casas da infância. Ou as casas reais não existem mais, ou as imaginárias foram sendo derrubadas uma a uma. Será que a arquitetura estuda isto? A memória que as pessoas têm dos lugares onde viveram.

Será que existem deuses para os mortos das casas velhas? Há religiões que os cultuam?

Nos Maias de Eça de Queirós boa parte da história se passa no enorme casarão, o Ramalhete, que depois de há muito fechado dois dos personagens irão revisitar e sentir. Abrir a janela de uma casa abandonada é como jogar luz no rosto dos fantasmas dela. Assim como na literatura, casas e lugares nos assombram.

Elenilton Neukamp

[Fragmento do livro "A caixa de perguntas", que devo publicar este ano]

30 junho 2011

Aqui e na Cochinchina

O Presidente da Ajuris (associação dos juízes do RS) me diz que eles não são parte da elite. Seus salários andam na casa dos R$ 30.000,00 mensais. Humm...creio que nossas concepções da palavra "elite" não se confundem.
No Brasil todos são contra a tal elite, até mesmo ex-presidentes que recebem fortunas para dar palestrinhas para almofadas e colarinhos de renda.

Nada contra alguém ganhar 30 mil reais de salário. A questão é que, quando se trata de serviço público (sobretudo em um país pobre) a conta é paga por todos.

No Brasil, a Justiça só tem sido rápida quando seus interesses e privilégios são contestados. E são privilégios de uma verdadeira casta. Não está sendo diferente agora, no caso do aumento do desconto previdenciário para os magistrados e demais servidores que recebem salários acima do teto estabelecido pelo Inss.

No estado do Rio Grande do Sul, a grande maioria do funcionalismo ganha seus míseros mil reais e alguma coisa ao mês. Os 15, 20, 30 mil reais dos altos escalões são um contraste violento.

Por isto tudo, estou a favor do desconto maior de previdência para os altos salários, recém aprovado por aqui.
Não é justo que a população fique pagando esta conta exorbitante.

O dinheiro que é usado para pagar altos salários e altas aposentadorias é o mesmo dinheiro que NÃO aparece para consertar escolas, iluminar ruas, contratar médicos, melhorar postos e hospitais etc.

Quem trabalha diretamente com a população, como nós professores, sabe muito bem do que estou falando. As carências são absurdas.

Por isto estranho a postura do sindicato de professores gaúchos (Cpers), defendendo com unhas e dentes a continuação de uma falsa igualdade (entre desiguais).
Nunca vi um juiz participar de passeata para defender salário de professores. Aliás, salvo raras e honrosas exceções, só tenho visto juízes vindo à público defender seus próprios interesses. Ou então falar bobagens, como aquele reacionário que tentou invalidar uma união entre homossexuais (depois de uma decisão favorável do STF sobre o tema).

Sim, já sei o que vou ouvir. Que este raciocínio é simplista, que tudo é mais complexo e blá blá blá. Tudo bem. Mas persisto em meu simplismo: é injusto, profundamente injusto, que a diferença salarial entre pessoas com o mesmo nível de formação chegue a vinte ou trinta vezes.
É injusto, profundamente injusto, que toda uma população continue pagando os privilégios de 2 ou 3% do funcionalismo público hiper bem pago.

Isto aqui, no Rio, em Sergipe, na China, Itália, no Irã ou em qualquer lugar. E até na Cochinchina que, para quem não sabe, existe e está no mapa.

12 junho 2011

SMED: silêncio constrangedor sobre o plágio

Em 2010 os professores/as da rede municipal de ensino de Porto Alegre realizaram vários encontros, divididos por área de atuação, de onde resultaria um documento com os referenciais curriculares da cidade. Os professores levaram a sério as discussões. Algumas geraram grandes polêmicas, como entre os professores/as de História.

Estes encontros e discussões não foram levados a sério pela Secretaria de Educação da cidade. O documento saiu em abril de 2011, mas logo descobriu-se que era um plágio de documentos de prefeituras e escolas particulares.
Entre os professores, o caso vergonhoso virou piada e é conhecido como "Control C e Control V" ou "Recortar e Colar". Diz-se nas escolas que para trabalhar na Smed basta saber recortar e colar.
Porém, não há do que rir. O fato demonstra um grande desrespeito, em muitos sentidos, e como a educação é muitas vezes tratada em nosso país. Além de tudo, gasta-se dinheiro público remunerando pessoas para copiar documentos alheios e publicando um material que é resultado de um crime (plágio).

Abaixo, reproduzo manifestação da vereadora de Porto Alegre Fernanda Melchiona sobre o fato.
Até agora, passados quase dois meses, a Secretaria de Educação de Porto Alegre não se pronunciou sobre o caso. As únicas aparições públicas da secretária neste período foram para fazer ameaças aos professores grevistas (no mês de maio).
Também não se tem notícia de qualquer tipo de punição aos autores do plágio, e tampouco quem eles são.

Seguimos esperando que acabe este silêncio constrangedor e que as autoridades em Educação da cidade se manifestem.
A continuar este "faz-de-conta que nada aconteceu", a Smed perderá ainda mais a credibilidade entre os professores e professoras da rede. E caminharemos para um período lamentável onde pouco ou nada do que virá da Secretaria será levado a sério nas escolas.



SMED faz plágio de documento da internet


A vereadora Fernanda, na tarde de segunda-feira (18/04), denunciou na tribuna da Câmara a Diretoria Pedagógica da Secretária Municipal de Educação que plagiou documentos publicados na Internet pela Prefeitura de Niterói. Segue o discurso da vereadora:

“ venho aqui para discutir um tema muito importante para a cidade de Porto Alegre, que são as referenciais curriculares para o Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.


Em primeiro lugar, cabe resgatar aos nossos ouvintes que as referenciais curriculares são fundamentais para prospectar o planejamento das ações pedagógicas em cada um dos Ciclos que existem na nossa Rede Municipal de Ensino, e que essas referências curriculares, evidentemente, têm que ser construídas a partir da gestão democrática e da oitiva dos professores, das associações, daqueles que constroem a política educacional.

Muito me espantou, Vereadoras e Vereadores, que o documento apresentado pela Secretaria Municipal de Educação, pela Diretoria Pedagógica do Ensino Fundamental copia parágrafos inteiros de documentos curriculares de outros Municípios, mostrando duas coisas. Primeiro: a ineficiência ou a ausência de uma Diretoria Pedagógica que trabalhe com os referenciais curriculares, de maneira correta, honesta, levando em consideração as especificidades e as necessidades de Porto Alegre. Segundo: ficamos chocados, porque nós, bibliotecários, professores, combatemos o plágio. Na escola, nós sempre discutimos a importância da pesquisa escolar, de os estudantes produzirem o seu próprio conhecimento a partir das leituras; a necessidade de referenciarmos, quando pegamos o material de um outro autor.

E imagine que a Prefeitura, a Secretaria Municipal de Educação, que deveria ensinar os estudantes a fazer pesquisas escolares, está utilizando trabalhos copiados de outros municípios do Brasil. Isso é inaceitável! Isso é plágio! Isso mostra uma ausência de assessoria pedagógica comprometida na Secretaria Municipal de Educação. E eu quero pedir explicações. Quais serão as medidas cabíveis desse plágio?

E, para não fazer nenhuma acusação vazia, eu trouxe os documentos para mostrar aos Vereadores. A apresentação dos referenciais curriculares da SMED de Porto Alegre é igual, todos os parágrafos são iguais – iguais! - do início ao fim, aos do documento publicado anteriormente pela Prefeitura de Niterói, disponível na Internet. Estou aqui com os documentos e acho que a Câmara Municipal tem de intervir nesse assunto.”

(disponível em http://www.fernandapsol.com.br/imprensa.php?id=394 ).

08 junho 2011

Eduardo Galeano dá o recado

http://www.youtube.com/watch?v=mdY64TdriJk&feature=share

Entusiasmo é "ter os deuses dentro".
Galeano vai até os gregos antigos buscar o que dizer sobre a energia
que nos move até hoje. A encontrar os outros nas praças, nas ruas.
E tentar sempre inventar um novo não. Algo que diga do nosso desacordo
com este mundo caduco.

E como na mitologia antiga, que do Caos gerou a Terra Mãe,
temos que parir novos dias. Engravidar a vida de outros rumos.
Nas praças da Espanha. Aqui. Ali. De dentro e em todo lugar.

Há vida.

07 junho 2011

Palocci e o capitalismo

O caso Palocci foi notícia nas últimas semanas. Um ex-ministro da Fazenda que sai de um governo sob várias acusações e depois enriquece dando "consultoria" à empresas. Seu amigo Zé Dirceu já havia feito o mesmo.
O sujeito enriqueceu 20 vezes em quatro anos.
Jogo de interesses e a venda de informações privilegiadas? Com certeza.
Tá, até aí todos concordam - mesmo os que fingem ingenuidade.
Ele caiu do governo e volta para seus luxos, desfrutar os milhões que faturou.
Ponto final ao que parece, pois sabemos bem que a rica Justiça é lenta para julgar os seus.

Todos que criticaram Palocci, sempre começavam suas falas (num tom sério) dizendo que "é direito de qualquer um ter uma grande evolução patrimonial, mas...". E que não há problema algum em uma empresa de consultoria lucrar tanto, se não fosse esse o contexto.

Me incomoda muito esta normalidade, estas "evoluções patrimoniais" defendidas pelo centro, esquerda, direita e retaguarda.
Legalmente ou ilegalmente, é justo que alguém lucre tanto?
Faz sentido um sistema onde um homem pode acumular tanta riqueza em tão pouco tempo?

O capitalismo é insano em muitos sentidos. Este do acúmulo infinito de riqueza talvez seja o maior deles. Qual o sentido em um homem sozinho ter um patrimônio maior do que tudo o que possuem outros 500 milhões de homens?

Danem-se os teóricos que tentam justificar tamanho absurdo (embora andem sumidos).
Danem-se as leis que o justificam.
E todos os lambe-botas que ocupam diariamente espaços nas mídias, tentando nos vender a ideia de que o mundo sempre foi assim e de que não há coisa alguma a fazer...

06 junho 2011

Vulcão, a Terra viva




Fotos surpreendentes do vulcão Puyehue, no Chile.
As imagens falam por si.

Registros do fotógrafo Cláudio Santana (AFP).

02 junho 2011

No Twitter @LeleNeukamp

"Marcha pela família" contra o projeto que criminaliza a homofobia. Humm..já vimos uma marcha assim antes, e deu no que deu. Idade Média.

Interessante este documentário "Um lugar ao sol":

Não entendi muito bem o que o CPERS está pensando, defendendo os altos salários do estado do RS. Nenhum professor será afetado pela medida.

A extrema esquerda, quando defende privilegiados do Estado, fica bem parecidinha com a direita. Isto de PSTU e PSDB juntos no RS é cômico.


Com a Irmã Dilma se ajoelhando diante da bancada evangélica, até o Fernando Henrique acaba se tornando um sujeito de esquerda.

FHC está certo. É mais do que hora de acabarmos com esta hipocrisia em relação à maconha no Brasil.

Engraçado que um senhor de 80 anos tenha que vir nos dizer que precisamos descriminalizar a maconha. Nós, os "jovens", envelhecemos?

27 maio 2011

Com os filhos na greve


Dizem que foi no Egito, por volta de 2100 a.C.. A primeira vez que os trabalhadores se organizaram e resolveram parar de trabalhar. Eles queriam receber mais comida pelo seu trabalho. Estavam construindo um templo, e a quantidade de pães que ganhavam era insuficiente para alimentar a eles e suas famílias. Teriam sido as mulheres que os convenceram a parar. Sempre elas.

O lugar onde as pessoas iam procurar trabalho, na França do século dezenove, era chamado de Place de Grève. Então o termo "greve" já na origem lembra pessoas reunidas nas praças.

Pessoas reunidas sempre são uma possibilidade. Possibilidade de quê? Ah, isso é o que precisamos inventar sempre.
De qualquer forma, quem está nos palácios sempre teme as pessoas reunidas nas praças. Pensando nisto inventaram a polícia.

No caso da greve que estamos fazendo há muito o que dizer.
Me tocou o minuto de silêncio da última assembléia, em homenagem ao líder negro que morreu e aos dois líderes assassinados esta semana no Pará (no mesmo dia da votação do novo e famigerado Código Florestal).
O silêncio daquele minuto foi mais impactante que os discursos inflamados.
E a frase de Marcelo Pires na parede da Câmara de Vereadores (onde fomos entrando): "Sempre que alguém lê um poema é domingo".

Mas a cena mais bela foi registrada pelo fotógrafo Jackson Zanin, para o Correio do Povo.
Mostra a professora de espanhol Maria Luíza e seus dois filhos, Gabriela e Guilherme. Ela pegou a lotação com eles e foi para a frente da prefeitura pressionar o prefeito.
Ela mais eu mais um monte de gente.
E quem não estava lá, perdeu de vê-los.

26 maio 2011

Os buracos de Porto Alegre

Hoje, às oito e meia da manhã, uma professora tentou desviar de um buraco gigantesco e seu carro capotou. É mais um buraco das ruas de Porto Alegre. Rua Fernandes Vieira.
Os moradores da redondeza já haviam pedido o conserto. Em vão.

A secretaria de obras disse que a responsabilidade era do departamento de águas. O departamento de águas afirmou que, não havendo água no buraco, o negócio não era com eles. As empresas terceirizadas nada disseram, porque terceirizaram a assessoria de comunicação.
Na disputa entre os que não queriam fazer o serviço, saiu ganhando o buraco - que aumentava a cada dia.
Depois da capotagem o buraco foi rapidamente fechado, o que gerou protestos das centenas de pequenos buracos em volta (que agora começam a trancar o trânsito).

Os buracos em Porto Alegre estão se organizando em um grande movimento. A idéia é engolir a cidade antes que as licitações das obras da Copa o faça. Inclusive há alguns comentaristas afirmando na imprensa que o movimento dos buracos já ameaça até a greve dos municipários. Os jornalistas são unânimes contra a greve, e é claro que isto não tem relação alguma com o fato de a prefeitura estar financiando uma campanha milionária de propaganda nos veículos onde eles trabalham.

Alguns engraçadinhos se apressaram em dizer que, se também caírem no buraco o secretário César Busatto e o prefeito Fortunatti, estão de acordo com o movimento dos buracos. Mas isto só pode ser coisa de extremistas de esquerda, sempre dispostos a manchar a honra ilibada destes ilustríssimos senhores.

Nas universidades surgiu a Teoria Geral dos Buracos. Depois de análises profundas sobre a história recente de Porto Alegre, passou-se a falar em "buraco do mundo". Estes estudos apontam para uma capital cada vez mais provinciana, repleta de buracos éticos e estéticos.

Há buracos enormes no pátio das escolas. Buracos extravagantes no teto do HPS. E nos alojamentos precários dos funcionários da limpeza urbana. Nos bolsos rotos dos servidores que ganham salário mínimo. Buracos obscuros na folha de pagamento da prefeitura, que fazem escorrer valores e prêmios para os mais bem pagos.

Um outro movimento já começa a se organizar, tentando questionar a hegemonia dos buracos em Porto Alegre.
Seu slogan é o seguinte:
"Ou você protesta contra os buracos, ou um dia será engolido por um deles".



Elenilton Neukamp

20 maio 2011

Paralisação dos servidores de Porto Alegre

O material enviado pela Prefeitura para as direções de escolas soa um pouco como ameaça. "Descontar os dias"; como assim? Não somos governados por um prefeito que foi sindicalista? O senhor José Fortunatti está disposto a manchar a sua trajetória política com este tipo de ameaça aos servidores? Não quer ele ser candidato à reeleição?
São perguntas que minha mente insiste em formular. Nem todas as pessoas têm preguiça de pensar, e penso até que são muitas que insistem em fazê-lo - mesmo que alguns queiram muitas vezes nos tratar como idiotas.

Aliás, como perguntar não ofende, gostaria de saber: o Prefeito Fortunatti não teria outro assessor para cumprir o papel de negociar com os servidores? Não sou membro da direção do sindicato, nem possuo qualquer autorização para falar em nome de qualquer pessoa que não eu mesmo. Mas creio que na condição de servidor e cidadão desta cidade tenho o direito de questionar. Precisamos mesmo 'engolir' a figura de um Busatto?

Se minha memória não me engana (e ela não costuma me enganar), este mesmo senhor que agora surge como interlocutor privilegiado do Prefeito, há algum tempo atrás foi afastado do Governo do Estado por conta de uma gravação feita pelo antigo vice-governador. Eu ouvi muito bem aquela gravação nas rádios, sei muito bem o que foi dito, e não posso deixar de sentir certa náusea cada vez que vejo este senhor na televisão. Como várias outras pessoas me dizem a mesma coisa, resolvi então escrever. Sei que está fora de moda no Brasil isto de ser honesto e exigir vergonha, mas assumo minha cafonice. Não quero estar na moda. Se estivéssemos num país sério, o senhor Busatto estaria em outro lugar e jamais em um cargo público.
Quando saiu do Governo do Estado, lhe perguntaram o que ele faria. A resposta foi a seguinte: "Agora serei um réles funcionário público". Hoje ele é quem fala em nome do Prefeito com todos os réles funcionários públicos de uma capital chamada Porto Alegre.

Por estas e por tantas outras é que eu vou parar na segunda-feira.


Elenilton Neukamp, professor de Filosofia.