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18 outubro 2011

Veneno para as crianças

Quem trabalha em escolas percebe com facilidade o exagero na medicalização de crianças e adolescentes. Qualquer indisciplina, bagunça, ou os exageros próprios da adolescência são vistos como problemas de saúde passíveis de intervenção com medicamentos. O que antes era causado pelo destino ou por um deus interventor, agora faz parte de outro fatalismo: do DNA, da hereditariedade, dos distúrbios catalogados pela sagrada Ciência.
Não é raro ouvir comentários do tipo "o fulano só pode ter problemas mentais", ou "tem indícios de hiperatividade", "transtorno bipolar", "já nasceu sequelado" etc. Falamos de termos médicos/psicológicos como se falássemos de uma receita de bolo.
O discurso que sustenta estas posturas tem nome e endereço conhecidos: a indústria farmacêutica. Ou você acha que as matérias de capa em revistas como a Veja (e outras) falando de remédios milagrosos são obra do acaso?
A indústria das drogas permitidas é uma das mais rentáveis do mundo. Perde apenas para a de armas e a de cocaína. E não sejamos ingênuos: não há bondade alguma nela.
Os médicos que são leitores deste blog certamente estão pensando "tudo bem, mas há drogas necessárias para os tratamentos...". É claro que estamos de acordo nisto. Mas quando falamos em drogas psiquiátricas a conversa é outra. E se os pacientes que tomam estas drogas são crianças e adolescentes a situação é bem mais séria. Nos Estados Unidos - que nós insistimos em imitar - já são algo como 500 mil crianças de 2 a 7 anos tomando antipsicóticos! Pare e pense neste número. 500 mil crianças pequenas. Eles são uma nação psicótica ou há um exagero na medicalização?
Existem casos (graves ou não) em que o medicamento é necessário, com certeza. Mas há uma imensidade de sintomas que fazem parte da existência, e necessitam muitas vezes mais a companhia de um bom amigo do que qualquer outra coisa.
Um fato é indiscutível. A indústria farmacêutica ganha muuuito com isto. E patrocina congressos médicos, cursos, universidades. É ética esta relação entre a indústria e os médicos? Muitos médicos e estudiosos afirmam categoricamente que não.
Uma destas pessoas lúcidas é a médica americana Marcia Angell. Reproduzo abaixo uma entrevista com ela publicada hoje na Folha de São Paulo.
É coincidência o fato de hoje ser o Dia do Médico. Mas, aproveitando a data, deixemos de lado as homenagens chatas. Há uma infinidade de médicos ruins por aí. Todo mundo já topou com eles. Não sejamos cínicos. Os bons médicos (e há alguns que são meus leitores) sabem que a valorização da medicina passa por outros caminhos. Um deles é chamar a atenção para este domínio do mercado sobre o ato de tratar e buscar a cura ou o alívio para alguém... Quando você chama a atenção para quem age equivocadamente, indiretamente lança um elogio para quem age de forma diferente.






Folha de São Paulo, 18 de outubro de 2011.

Estamos dando veneno para as crianças

MÉDICA ATACA INDÚSTRIA POR ESTIMULAR USO DE REMÉDIOS PSIQUIÁTRICOS PARA PACIENTES INFANTIS



A médica americana Marcia Angell, 72, ex-editora da revista especializada "NEJM" e autora do livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos"

CLÁUDIA COLLUCCI
DE WASHINGTON

Primeira mulher a ocupar o cargo de editora-chefe no bicentenário "New England Journal of Medicine", a médica Marcia Angell já foi considerada pela revista "Time" uma das 25 personalidades mais influentes nos EUA.
Desde 2004, Angell, 72, é conhecida como a mulher que tirou o sossego da indústria farmacêutica e de muitos médicos e pesquisadores que trabalham na área.
Naquele ano, ela publicou a explosiva obra "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos", que desnuda o mercado de medicamentos.
Usando da experiência de duas décadas de trabalho no "NEJM", ela conta, por exemplo, como os laboratórios se afastaram de sua missão original de descobrir e fabricar remédios úteis para se transformar em gigantescas máquinas de marketing.
Professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Harvard, Angell é autora de vários artigos e livros que questionam a ética na prática e na pesquisa clínica. Tornou-se também uma crítica ferrenha do sistema de saúde americano.
Tem se dedicado a escrever artigos alertando sobre o excesso de prescrição de drogas antipsicóticas, especialmente entre crianças. "Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade", diz ela.
Mãe de duas filhas e avó de gêmeos de oito meses, ela diz que recebe muitos convites para vir ao Brasil, mas se vê obrigada a recusá-los. "Não suporto a ideia de passar horas e horas dentro de um avião." A seguir, trechos da entrevista exclusiva que ela concedeu à Folha.



Folha - Houve alguma mudança no cenário dos conflitos de interesses entre médicos e indústria farmacêutica desde a publicação do seu livro?
Marcia Angell - Não. Os fatos continuam os mesmos. Talvez as pessoas estejam mais atentas. Há mais discussão, reportagens, livros, artigos acadêmicos sobre esses conflitos, então eles parecem estar mais sutis do que eram no passado. Mas é claro que as companhias farmacêuticas sempre encontram uma forma de manter o lucro.

E os pacientes? Algumas pesquisas mostram eles parecem não se importar muito com essas questões.
Em geral, os pacientes confiam cegamente nos seus médicos. Eles não querem ver esses problemas.
Além disso, as pessoas sempre acreditam que os medicamentos sejam muito mais eficazes do que eles realmente são. Até porque somente estudos positivos são projetados e publicados.
A mídia, os pacientes e mesmo muitos médicos acreditam no que esses estudos publicam. As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: "Você precisa perder peso, fazer mais exercícios". E a pessoa diz: "Eu prefiro o remédio".
E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso.
Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base.

A sra. tem escrito artigos sobre o excesso de prescrições na área da psiquiatria. Essa seria hoje uma das especialidades médicas mais conflituosas?
Penso que sim. Há hoje um evidente abuso na prescrição de drogas psiquiátricas, especialmente para crianças.
Crianças que têm problemas de comportamento ou problemas familiares vão até o médico e saem de lá com diagnóstico de transtorno bipolar, ou TDAH [transtorno de déficit de atenção e hiperatividade]. E é claro que tem o dedo da indústria estimulando os médicos a fazer mais e mais diagnósticos.
Às vezes, a criança chega a usar quatro, seis drogas diferentes porque uma dá muitos efeitos colaterais, a outra não reduz os sintomas e outras as deixam ainda mais doentes.
Drogas antipsicóticas estão claramente associadas ao diabetes e à síndrome metabólica. Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade.
Pessoas que acham que isso não é assim tão terrível sempre argumentam comigo que essas crianças, em geral, chegaram a um estado tão ruim que algo precisa ser feito. Mas isso não é argumento.

Hoje, fala-se muito em medicina personalizada. Na oncologia, há uma aposta de que drogas desenvolvidas para grupos específicos de pacientes serão uma arma eficaz no combate ao câncer. A sra. acredita nessa possibilidade?
Para mim, isso é só propaganda. Não faz o menor sentido uma companhia farmacêutica desenvolver uma droga para um pequeno número de pessoas. E que sistema de saúde aguentaria pagar preços tão altos?

Algumas escolas de medicina nos EUA começaram a cortar subsídios da indústria farmacêutica e de equipamentos na educação médica continuada. No Brasil, essa dependência é ainda muito forte. É preciso eliminar por completo esse vínculo ou há uma chance de conciliar esses interesses?
Deve ser completamente eliminado. Professores pagam para fazer cursos de educação continuada, advogados fazem o mesmo, por que os médicos não podem? A diferença é que você não precisa ir a um resort no Havaí para ter educação médica continuada. É preciso pensar em modelos de capacitação mais modestos. E, com a internet, todos os países, mesmo os pobres ou em desenvolvimento, podem fazer isso. A educação médica não pode ser financiada por quem tem interesse comercial no conteúdo dessa educação.

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