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31 dezembro 2013

Haitianos de barro e de fogo

Muitas pessoas têm me falado (com emoção) sobre o texto "Homens de barro e de fogo", que está na página 105 do meu livro. Alguém até me escreveu que ali está o mistério que sempre percebeu em mim. Mas não há mistério algum, como já nos ensinou Fernando Pessoa.
A cidade da qual eu falo no texto se chama Poço das Antas. Onde eu nasci. Coração e raízes lá também.
Pois agora há um frigorífico, que mata mil porcos por dia. Quando os caminhões passam carregados de porcos o ar fica pestilento. Para onde vai o sangue ninguém sabe dizer. Os gritos só os homens que estão lá dentro podem ouvir.
O prédio pago com dinheiro do BNDES, e a prefeitura não cobra impostos. Beleza de negócio.
Mil animais mortos por dia é pouco. O mercado globalizado pede mais e mais. Mas matar é um trabalho que poucos se animam a fazer. E quem faz costuma perder o ânimo. Depressão e suicídio são comuns.
A empresa não encontra trabalhadores para fazer o pior de todos os serviços.
Então o que se faz? Se contrata trabalhadores haitianos. São 44 homens do Haiti, que vieram do Acre para fazer qualquer trabalho a qualquer salário. Ficam no antigo hospital, onde eu nasci, e que agora se transformou em alojamento.
Não podem sair às ruas depois das 22 horas. Toque de recolher, mas somente para eles.
Apenas um consegue entender o português. Todos os outros só falam francês. Isto numa cidadezinha onde a maioria da população se comunica mais fluentemente em alemão.
Bom, nem preciso falar em racismo. Claro que meus leitores e leitoras sabem muito bem que estamos no Brasil. Mas há variações também na crueldade.
Este Brasil grande e rico que atrai os miseráveis do mundo está muito bem colocado dentro da geografia da semiescravidão.
Para o Haiti nosso governo enviou uma missão. Militar. Para garantir a segurança não sei de quem. O povo haitiano passa fome, vive em péssimas condições. Sofre todo tipo de privação, além das tragédias da natureza e da corrupção dos governos.
Volto para os homens haitianos que agora estão no mesmo lugar onde eu nasci. Querem enviar comida pelo correio, para seus familiares distantes. Um até foi visto tentando vender um lagarto que ele trazia amarrado. Ninguém entendeu, pois aqui o lagarto não tem o valor que tem lá. Valor de alimento.
Eles almoçam no próprio frigorífico.
Dia desses, contou emocionada minha tia, um deles começou a chorar durante o almoço. Os outros foram socorrê-lo, pensando que ele passava mal.
Não, estava bem. Não estava bem.
Ele disse que estava chorando porque pensava em sua família, no Haiti, que naquele momento não tinha nada para comer.





28 dezembro 2013

Papa Francisco perdoa Tom Zé

Como dizia o Belchior,
o novo sempre vem.
Com alegria acabei de descobrir aqui "O Terno",
e esta canção divertida e inteligente.
As ironias sempre me caem bem...

25 dezembro 2013

Os incêndios, Mujica presidente do Brasil e um beija-flor

Os incêndios durante o Natal sempre me chamaram a atenção. Que relação maluca é esta entre este período e o fogo? O que falam de nós as queimadas e as casas incendiadas?

Minha mãe hoje falando pouco. Isto é digno de nota. Por quê? Um médico receitou um destes "remedinhos para dormir". Médicos, hoje em dia, adoram receitar estas drogas. Muitas vezes por quase nenhum motivo. A indústria farmacêutica agradece, minha família lamenta. E um monte de gente preocupada com a maconha no Uruguai. Se vissem minha mãe hoje, teriam ainda mais um motivo para aderir à minha campanha: "Mujica presidente do Brasil!".

Um amigo da família, um homem do povo. Destes que perdem tudo e recomeçam de novo. Pois soube do meu livro pelo jornal, foi até a casa de minha mãe e comprou o exemplar dela. Hoje nos encontramos, ele  leu o livro, adorou e já emprestou para uma pessoa que acredita precisa lê-lo. Falamos sobre o Brasil e a democracia que se diz que há por aqui, desses governantes que durante a tarde falam em ouvir e à noite mandam a polícia bater. Nas despedidas, lhe disse que a experiência da caixa de perguntas é verdadeiramente democrática e funciona, mesmo com esta escola que ele vê muito violenta.
Ele, já saindo de bicicleta e desiludido com o país, me disse: "Mas tu é aquele beija-flor que vai jogando água pra apagar o incêndio".
Nem concordo com esta sua conclusão, mas adorei a imagem do pássaro.
Penso que somos muitos a jogar as gotas sobre o incêndio, que no fundo talvez seja bem menor do que queremos crer. E para usar uma metáfora (do Bebeto Alves) que há muito tempo viaja comigo:

                                          "SOMOS UM BANDO E MUITOS OUTROS".






21 dezembro 2013

Um sapo na direção

Há umas três semanas participei do bazar de natal da Casa Ametista e do Recanto Esmeralda (onde meu filho brinca e aprende durante as manhãs). São jardins de infância que seguem a pedagogia Waldorf. Também vendi meus livros por lá, porque todo artista tem de ir aonde o povo está.
No final da tarde revelei para um grupo de crianças meus poderes mágicos, e de posse de uma varinha de condão caída de uma árvore transformei várias meninas em borboletas. Várias vezes e de vários tipos, inclusive borboletas princesas.
Depois em serpentes que rastejavam pelo pátio.
Ontem, na festa de natal da Esmeralda, uma destas crianças queridas também trouxe sua varinha mágica e me transformou primeiramente em macaco, depois em sapo.
Quando entrei no carro, aos pulos, o irmão dela veio me lançando um olhar penetrante, e incrédulo me falou pela janela: "Mas sapo não dirige!".
Então me descobri o primeiro sapo a dirigir um carro.

14 dezembro 2013

Marcia Tiburi escreve sobre "A caixa de perguntas"



A CAIXA DE PERGUNTAS

O abandono da educação brasileira é uma das questões sociais mais graves que experimentamos hoje em dia. Pouco podemos fazer enquanto governos projetam seu ódio contra o povo também por meio da educação: contra os jovens, as crianças e o futuro. Os resultados históricos são previsíveis num país que já vive em seu tempo presente os efeitos do desprezo pela educação que nasceu no passado ditatorial brasileiro. Que a ditadura tenha sido introjetada por tanta gente e seja hoje uma constante cultural exige nossa atenção mais delicada.
No meio desse quadro triste, em que a profissão de ensinar, em que a experiência da aprendizagem e da formação são mortas diariamente às pauladas, surgem no entanto, luminosidades que nos alegram. A alegria é um ápice de esperança, aquela que a gente sente quando alguma coisa faz sentido e melhora o mundo onde vivemos.
Uma dessas alegrias é o livro “A Caixa de Perguntas, desafio vivo em sala de aula” (Ed. Libretos, 2013, 148 p.) de Elenilton Neukamp, professor da rede pública de ensino de Porto Alegre, mestre em educação pela UFRGS e autor de outros dois livros. A única coisa de que me orgulho na vida é dos meus alunos e fico muito feliz em dizer que Elenilton passou pela minha sala de aula sempre trazendo lindas questões, lindos textos. Dessas pessoas inesquecíveis que a gente agradece a sorte de ter encontrado.
O livro é um relato de experiência pedagógica com filosofia. Como a disciplina de filosofia é ainda muito recente no ensino fundamental e médio dificuldades fazem parte da coisa mesma: Como ensinar filosofia? O quê ensinar? Como chamar a atenção dos alunos para a experiência do pensamento? Como ajudar os garotos a se interessarem pelos conteúdos do conhecimento, de ética, de estética? Não há professor de filosofia que não se coloque estas questões quando tem diante de si crianças e jovens num contexto de crise geral – política e cultural – da educação. O professor de filosofia sabe que sua aula precisa da alegria do pensamento, a força revolucionária que faz pensar, logo, a aula tem que ser uma “boa” aula. A aula de filosofia é sempre um momento muito especial porque é sempre uma aula sobre o cerne da experiência da vida que mora nos atos de pensar, sentir, discernir e compreender. Toda aula de filosofia transita nesse quadrado mágico feito da básica matéria do ato esclarecido a que damos o nome de filosofia.
Elenilton inventou um método para trabalhar com esse universo. Só que ele pretendia uma aula muito democrática na qual todos tivessem, de algum modo, voz. Uma aula em que o comprometimento e o engajamento eram a aposta a pagar. Assim, ele inventou a caixa para que todos pudessem perguntar o que quisessem, do modo como quisessem. A caixinha, em princípio usada em uma turma, ficou famosa na escola e Elenilton foi convocado a usá-la até com as turmas de adultos nas quais também leciona.
Sem identificação, sem nomes de pessoas e sem ofensas pessoais, as perguntas criaram vida própria: a vida das ideias das quais vive uma aula de filosofia.
A partir daí o livro “A caixa de perguntas” conta sua própria história. Um capítulo impressionante traz uma lista das próprias perguntas que vão desde questões sobre sexualidade até perguntas sobre Deus. O modo como os estudantes as redigem, são um caso a parte que, sinceramente, só lendo pra ver. Mas dou aqui 3 exemplos da diversidade que pode surgir no uso de um método como este:
- Por que Deus quis “inventar”o mundo?
- Por que a maioria dos profes são chatos?
- Ter os dentes tortos influencia na hora do beijo?
Recomendo o livro a todos os professores de filosofia de todas as etapas escolares. Mas também sugiro a leitura às pessoas em geral, independentemente de suas idades e profissões. A carência de pensamento entre nós está fundada em um vasto complexo social e cultural, mas tem ligação direta com o medo de pensar, devido à sua proibição (muitas vezes surgida nas próprias faculdades de filosofia em que professores são controladores do que se pode ou não dizer). É este medo/proibição que produz a vergonha de pensar e de falar. Esta vergonha que a aula de filosofia pode ajudar a mudar, porque a aula de filosofia é o lugar onde se aprende a falar e, sobretudo, a ouvir.
A Caixa de Perguntas é um presente nesta época em que a sala de aula é um verdadeiro tédio para a maioria dos alunos. Mas também para muitos professores que se sentem perdidos diante do que fazer com crianças e jovens que trazem da cultura e da família aquele desprezo pela educação que, infelizmente, em nosso precário cenário, ainda precisamos como professores e cidadãos combater todos os dias.
No quadro da miséria material e espiritual oferecida pelos governos e pelo capitalismo que transformam a educação em problema bancário, a “Caixa de Perguntas” é a generosidade que combate a avareza, a alegria de pensar que combate a ignorância.
Só posso desejar boa leitura.
*Para quem quiser acompanhar o Elenilton: http://eleniltonneukamp.blogspot.com.br

Publicado em 14/12/2013, no blog da Marcia Tiburi no site da Revista CULT






11 dezembro 2013

Dois Albertos


Meu pai me apresentou os pássaros.
Meu tio me ensinou a ler os seus vôos.
Alberto é um nome que faz parte da minha carne.
Sete letrinhas.
O dionisíaco de um com seu violão, a cachaça e as canções
inventadas para fazer sorrir.
O apolíneo do outro, iluminando com a lanterna pinheiros misteriosos e saciando minha curiosidade com suas palavras e livros.
Um é loucura, delírio, desejo escorpiano de vida e paixão.
Outro é sensatez, tranquilidade, celibato e meditação sobre a técnica.
Entre um e outro, eu.
Em minha sensatez toda insensata desaprendi a tocar o violão.
Em minha insensatez quase sensata ainda nem escrevi o livro, não inscrevi parte de mim nas veias da terra.
Místico sem fé.
Vagando entre momentos solitários e lençóis coloridos.
Comigo a língua portuguesa quer ir pro brejo.
Os dois Albertos. Alentos.
Entre um e outro

Eu.




(Uma singela homenagem ao meu tio Alberto A. Flach, Irmão Albano, que faleceu ontem)





06 dezembro 2013

Entrevista na TVCOM

Entrevista ao programa TVCOM Tudo Mais, em 8/11/2013,
falando sobre a caixa de perguntas e o livro...









Mandela

A grande mídia adora domesticar e "pasteurizar" os grandes personagens, as grandes pessoas.
Este textinho da Zero Hora chamando o Mandela de "herói da tolerância" é um exemplo.
Tolerância?
Ele foi guerrilheiro, lutou contra um regime autoritário e racista. Ficou 27 anos preso. Era acusado de terrorismo pelos Estados Unidos, assim como por seu próprio país.
Não foi tolerante com coisa alguma. Não cruzou os braços. Lutou.
Suas ações como governante foram políticas, inteligentes. Não respondeu com violência contra a elite branca, mesmo tendo todos os motivos para fazê-lo.
Tolerância é outra coisa, e é bem pouco. Precisamos muito mais que isto!



01 dezembro 2013

Olhos negros

Há 50 anos nascia meu irmão mais velho, Deoclécio.
Era também um domingo. O sexo do bebê só era conhecido no momento do nascimento.
Não havia exames, nem vídeos disto e daquilo. Tampouco existia por lá o SUS. Quem não tivesse como pagar um médico (raro) não era atendido. Quem fazia o trabalho eram as parteiras, mulheres especiais e fortes que se faziam respeitar.
Diz a minha mãe que meu avô estava em outra cidade. Voltou rápido, à cavalo, quando chegou a notícia do nascimento do neto.
Quando entrou no quarto e viu a criança não conseguiu conter um grito de alegria: "É um gurizinho, e tem o olho bem preto!". Tudo isto ele falou em alemão, pois lá quase nada se sabia em português.
Numa região onde o lugar comum eram os olhos azuis, uma criança de olhos negros era sempre festejada.
Creio que também por isto estranho tanto o encanto das pessoas com a cor dos olhos do meu filho. 
E sigo nesta loucura de navegar em qualquer cor e procurar nos olhos apenas o olhar. 






(Na foto, é ele o fotógrafo improvisado que tenta registrar a fila da sessão de autógrafos.)