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29 novembro 2014

apesar

Apesar da situação
dos loucos do trânsito
do governo e da oposição

apesar do rancor
do bronco na reunião
do cateto da hipotenusa
dos juros e da inflação

apesar de tudos
e de nadas
do roubo e do rombo
da Copa, das cópulas
e da mentira da eleição

apesar do pesar
de quem insistia
a árvore derrubar
duas bergamotas nasceram

de algum lugar surgiu
um vagalume
os tomateiros, a rúcula, os hortelãs
e todas as listras negras
e brancas de um gambá

as cachorras latiram
os homens gritaram
os sapos-boi fizeram samba

e uma goteira insistente
perdida em algum lugar
lembra de tudo sempre assim
inacabado


19 novembro 2014

Relatos selvagens

O cinema argentino é tudo isto mesmo que dizem? É. E muito mais ainda.
Há muito tempo que eu não assistia um filme tão empolgante quanto "Relatos Selvagens", do argentino Damián Szifron.
A história é dividida em vários episódios, que não se conectam entre si senão por tratar do humano, demasiadamente humano. Os relatos são mesmo selvagens porque tratam de pessoas "comuns" colocados em situações de extrema emoção, no limiar da loucura.
Qual é a fronteira entre o pacato cidadão e o lunático? Qual o limite entre o bom senso e a perda total da lucidez? O enredo leva estas questões ao extremo e às vezes ao absurdo.
Está claro que não irei contar o filme, para não estragar a surpresa. Mas posso dizer que a cena inicial é perfeita, assim como o último episódio.
Minha mulher saiu da sala de cinema chorando, e não sabia se chorava de tristeza ou de alegria. Veja bem então que o filme mexe com as emoções. Em alguns momentos pensei se havia feito uma boa escolha em ir assisti-lo.
Eu, que não gosto de hiperrealismo em cinema (ou sei lá que nome se dê para isto), abriria mão de algumas cenas mais cruentas. Mas o filme não é meu, então deixo de ser chato. As histórias nos pegam, nos convencem, por seu humor mórbido ou pela escancaração do que há de mais hipócrita nas relações humanas.
A cena inicial se passa num avião, onde um homem de meia idade resolve iniciar um papo com uma mulher bonita que senta no corredor ao lado. Logo perceberão que têm um conhecido em comum, que ele simplesmente escracha. Uma senhora sentada na poltrona de trás escuta a conversa, e entra nela porque afirma também conhecer aquele a quem eles se referem. De repente, a surpresa: todos passageiros do avião conhecem aquela pessoa. E o que vai acontecer? Ah...só vendo.
O último episódio é um casamento super ultra mega alegre. Uma crítica mordaz à sociedade do espetáculo, ao nosso tempo, às convenções cheias de brilho e barulho mas vazias de laços efetivos. O casamento-show é todo programado para ser um sucesso. Entretanto, a noiva descobre durante a festa que está sendo traída. Se você pensa que já assistiu muitos filmes sobre mulheres traídas, então não viu muito. Sempre há muito mais a ser dito, sobretudo em se tratando do criativo cinema argentino.
Uma aula de atuação também. Todos convencem. A noiva é impagável, assim como a maquiagem perfeita.
Estaríamos todos/as nós a um passo de perder totalmente o controle? Não conseguimos agir com serenidade diante de situações que nos provocam? O que você acha?



Vá assistir o filme e depois me diga.

17 outubro 2014

Amar

Sou composto por músicas, que me fazem do jeito que sou.
Há uns quase 20 anos atrás, ou mais, fui surpreendido
logo cedo com esta canção no rádio.
Inaugurava minha manhã de um jeito tão poético
que fui logo apertando o "rec" do aparelho de som (era tempo das fitas-cassete).
A fita estava no fim, e a música ficou gravada pela metade.
E como aconteceu com tantas outras canções, fiquei buscando esta outra metade
por um certo tempo, muito. Não havia ainda a facilidade da Internet, e a grana era curta.
De qualquer jeito, segui cantando e cedendo ao coração a razão.
Então agora eu divido aqui com vocês essa beleza:



"Amar", do Tom Zé.

08 outubro 2014

Os passarinhos e a matemática

Estudar matemática é importante.
Talvez inclusive o ajude a controlar suas inclinações místicas, que o fazem acreditar em sonhos de chegar atrasado na consulta.
E você acorda com os sons da natureza, antes que o celular dê o sinal.
Chega às sete da manhã no consultório, mesmo sabendo que só será atendido às nove da manhã, na consulta marcada para às 8:20h.
Da próxima vez, calcule melhor o tempo de deslocamento.
E não se deixe levar pelo canto enlouquecido dos passarinhos.

19 setembro 2014

Século XXI

E foi-se o tempo de aceitar humilhações e se calar.
De ser chamado de "macaco", "veado" e ter de aturar para sempre
o riso sarcástico do agressor.
Agora as vítimas descobriram que têm voz.
O direito ao preconceito não existe.
Bem-vindos ao século XXI. Enfim ele começou.

"E até as mulheres, ditas escravas,
já não querem servir mais".
                     Raul Seixas

14 setembro 2014

Plim plim

Desliga a televisão por um dia
Para bater um papo com o João
ou para dar um beijo na Maria

Desliga a televisão por um dia
e te liga no que diz a rima
Porque mesmo que a TV seja colorida
mais valem as cores da vida.





Estes versinhos quase inocentes
eu os escrevi há 20 anos atrás,
e agora foram relembrados nas redes sociais por uma professora querida.


31 agosto 2014

A política chata

Os militantes e profissionais da política são, em geral, chatos. Muito chatos.
Falam para seus iguais.
Uns repetem insistentemente o discurso dos outros.
Negam o contraditório, se recusam a dar sequer valor à opinião alheia.
Quem é diferente deve ser bloqueado, excluído, eliminado do mundo (ao menos do mundo que cabe na cabeça deles).
São intolerantes, fechados em si e em seus interesses (mesquinhos).
A realidade passa longe de seus comentários.
Analisam a partir de idealizações.
Mas a maior (e mais perigosa) das chatices, é a incapacidade de duvidar das próprias certezas.
Nem de longe lhes passa pela cabeça a possibilidade de estar errados...


24 agosto 2014

Oxalá chegar

"Todos vestem cores
pra saudar seus orixás
Só eu fico dentro do meu branco
pra enxergar
Oxalá chegar
Oxalá chegar"

Arnaldo Antunes

15 agosto 2014

E onde é que fica a realidade?

A morte trágica de Eduardo Campos tem trazido à tona um sem número de especulações e maluquices.
A última que li é de uma suposta conspiração, liderada por Marina Silva e (claro) organizada pela CIA, que teria derrubado o avião em que estava o presidenciável.
Os "argumentos" apresentados seriam a ligação de Marina com ongs internacionais, ligadas à realezas europeias e o fato de ela não ter embarcado no mesmo voo.
Só faltaram aí na lista os Iluminattis, extraterrestres e a assinatura de um lunático: Por que não Olavo de Carvalho?
Seria até engraçado, não fosse o fato de que as pessoas agem a partir de avaliações deste tipo. Se movem assim, trabalham, votam, interagem, julgam os outros.
E o mundo real, os fatos, que se encaixem nestas fantasias todas...

09 agosto 2014

Pai, pais, país

Leio todas estas coisas sobre o dia dos pais.
E me pergunto que "pai" é este que aparece nas felicitações.
Pai idealizado. Pai comercial.
O pai é uma de nossas grandes questões como país.
Estamos sempre à procura de um pai.
Mas de que pai estamos falando?
O pai que sequer registra o filho?
Do pai que abandona? Do pai que bebe? Que bate? Que paga a pensão e vai ver o filho uma vez por semana?
O pai adolescente, que nem sequer é nomeado como pai?
Que figura é esta, que nos foge?
Por que precisamos tanto dos pais da nação? Dos Lulas e Getúlios?
Segundo os números que gostam de ser criados e recriados,
algo como 4% dos pais dividem as tarefas domésticas em casa. Só isto? Só 4%? Só dividir?
Por que tantos "heróis" pais nas redes virtuais?
O pai que assume a criação dos filhos é uma invenção recente,
mas parece que a propaganda sobre ele generaliza sua atuação na sociedade. Entretanto ele segue exceção.




05 agosto 2014

A lei ilegal

Dois manifestantes de São Paulo foram presos por porte de material explosivo.
Há 45 dias estão na prisão. Um deles é professor.
Várias testemunhas depuseram, dizendo que eles são inocentes e que no momento da prisão não estavam cometendo nenhum tipo de ato ilegal.
Agora o laudo da própria polícia apontou que o material NÃO era explosivo.
Eles continuam presos.
Já a polícia do Rio incriminou o filósofo anarquista Bakunin (que morreu em 1876).
Enquanto isto, nas ruas, a população segue insegura.
Definitivamente, não precisamos deste tipo de polícia.
Nem dos juízes que colaboram com este tipo de coisa.

21 julho 2014

É

     Querem nos fazer crer que democracia é apenas apertar botãozinho a cada dois anos, e escolher entre seis e meia dúzia.
     Por isto, todos estes que dividem o poder estão juntos na campanha contra novas manifestações.
Também por isto as prisões.
     Há um ano atrás eles borraram as calças, agora semeiam o medo para que a gente não volte a mostrar a cara.
     Quem gosta de ser enganado, que acredite.
     Eu é que não fico "com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela".

20 julho 2014

O príncipe

Ela o viu como quem vê o final do caminho do sonho.
Ele era lindo, perfumado, perfeito. Tudo nele emanava sedução.
Sabia se vestir, dançar, olhar.
O universo enfim conspirava a seu favor. E era lindo demais.
Se havia alguma dúvida para ela, ao vê-lo se dissipou no ar.
O príncipe era tudo. Era o mundo todo e um tanto mais.
Ela jogou-se sem medo e lhe deu o melhor de todos os beijos.
Bum!
Ele se transformou num sapo.
Acabou.

11 julho 2014

Neruda outra vez

Neste sábado, 14 de julho, um holograma de Pablo Neruda caminhará pelas ruas de Santiago do Chile.
Ele nasceu há 110 anos.
O fantasma de Neruda retornará para encontrar belezas onde ninguém mais vê coisa alguma?
O que pensará ele sobre o mundo, este mundo?
Chorará o sangue das crianças palestinas derramado pelas ruas?
Escreverá outros tantos poemas de amor e outra canção desesperada?
O grande poeta certamente se assustaria com este nosso tempo. Será mesmo, Elenilton? Não é de susto, medo e maravilhas todo o tempo percorrido?

Os ossos dos ditadores contaminam a terra, toda a terra.
As ondas continuam a bater nas pedras de Isla Negra.
E os amantes de todas as partes seguem insistindo, lutando.
Certamente não é o mundo dos sonhos de ninguém.
Mas as razões para seguir continuarão existindo. Nós as inventamos todos os dias.
Pablo Neruda está vivo em seus livros, em seu testemunho militante.
O mundo, injusto, segue em obras.


Na foto, Pablo Neruda brinca com um pássaro na casa de Jorge Amado.

30 junho 2014

Ausência temporária

Estou ausente daqui temporariamente,
pois ainda sem internet na nova casa.
Olhos e antenas seguem ligados.
Mas, pela velocidade da empresa Oi,
até o final desta década estará tudo resolvido...hehe!

13 junho 2014

Entrevista






Entrevista realizada pelo escritor Dilan Camargo, no programa Autores e Livros da TV Assembleia,
foi ao ar no dia 8 de junho de 2014.

10 junho 2014

Não teve Copa - Vladimir Safatle

A ideia parecia perfeita. Depois de 12 anos de continuidade com programas importantes de transferência de renda, que levaram 32 milhões de brasileiros à classe média, o Brasil estaria em condições de mostrar ao mundo sua nova imagem. Seria a consagração do país diante do cenário internacional.
Mostraríamos um Brasil alegre, orgulhoso de si mesmo, onde empreiteiras e trabalhadores cantam de mãos dadas o hino nacional e se veem como sócios em um novo e radiante momento de desenvolvimento. Publicitários estariam a postos para mobilizar afetos de superação entre um gole e outro de Coca-Cola. Só sorriso no ar.
Essa era a verdadeira função da Copa do Mundo: completar a narrativa política da transformação nacional apelando ao acolhimento do olhar estrangeiro.
Bem, o problema é que não teve Copa. Houve jogos, um campeão, estádios em Brasília, Cuiabá e Manaus, mas não houve Copa. Não apenas porque apareceu uma outra imagem do país: essa da nação que se estagnou em um ponto no qual o desenvolvimento não consegue se transformar mais em qualidade efetiva de vida. Ponto no qual operários são mortos em construção como algo que, nas palavras de Pelé, “é normal, pode acontecer”, quase como uma lei da natureza. Na verdade, não houve Copa do Mundo porque o povo brasileiro saiu do lugar.
Ele tinha um lugar previamente definido. Sua função era celebrar e aclamar. Com casas pintadas de verde e amarelo e, como se diz, com “alegria contagiante”, o povo brasileiro deveria abraçar seu novo lugar no mundo. Mas algo saiu definitivamente do lugar. O enorme aparato policial-militar montado para impedir que o povo saia da coreografia da felicidade imposta e a brutalidade governamental contra grevistas, como vemos mais uma vez em São Paulo, tudo está aí para não deixar negar. Não, o povo brasileiro não está feliz, pois se sente como alguém que teve sua paixão usada por outros.
Sinal dos tempos.
No chamado “país do futebol” pela primeira vez uma Copa do Mundo não trará dividendos políticos, mas mostrará uma população consciente da tentativa de espoliar seus sonhos. População cuja revolta pode explodir a qualquer momento, da forma mais inesperada possível, mesmo que seja governada por pessoas que nada mais tem a oferecer a não ser a polícia.
Algo mudou de maneira profunda, mas os publicitários, estrategistas e políticos não perceberam. Não há grande evento que consiga esconder o desencanto de um povo.
Por isso, nada mais honesto do que dizer: não teve Copa. E quem mais ganhou com isso foi o Brasil.


(Publicado na Folha de São Paulo, em 10 de junho de 2014)

05 junho 2014

Mídia e democracia

Esse papel que a RBS (afiliada da Globo no RS) faz de porta-voz de seus governos, é lamentável. 
Novamente estamos vendo isto na greve (dos municipários) em Porto Alegre.
Ruim para a democracia, para o jornalismo, para a sociedade em geral.
Não é ao acaso que existem tantas pessoas e movimentos que se voltam à esta empresa para criticá-la. 
E chegamos a um novo período de eleição onde ela tem (além do atual governador que coloca força policial exclusiva para defender a empresa), 
seus próprios candidatos ao governo e ao senado.
Esse acúmulo de poder não pode ser bom, pois se uma voz se amplifica ao extremo outras tantas silenciam.
Não vai haver democracia real enquanto houver monopólio da informação.
Mas já estamos furando o bloqueio, as coisas já estão acontecendo...

01 junho 2014

Pátria de chuteiras

Que grande bobagem esta de dizer que as pessoas que criticam a realização da Copa do Mundo no Brasil são contra o país.
Isto é tão tolo quanto acreditar que a seleção brasileira representa "a nação". 
Este discurso de "a favor" e "contra" o Brasil foi feito pela ditadura militar, enquanto as pessoas eram torturadas e o país saqueado.
E ainda há os que não entenderam o chamado "Não vai ter Copa", e o leem no sentido literal.



24 maio 2014

A Copa dos Tolos - José Maria Arruda

Eu devia estar contente porque vai ter uma Copa do Mundo no Brasil, mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado... Neymar, Globo, Galvão, Felipão, Ivete Sangalo, eu acho tudo isso um saco... Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a Copa chegar... Porque longe das cercas embandeiradas dos estádios, no cume calmo do meu olho que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador...


(Publicado no Facebook pelo prof. de Filosofia carioca José M. Arruda)

13 maio 2014

Mais televisão

Nossa, me emocionei com o poder do Estado brasileiro.
Em Porto Alegre, a "área Fifa" vai ser compreendida apenas de quatro ruas. Dentro delas, a circulação será restrita e controlada, mas a população vai poder andar por ali.
As pessoas vão poder entrar nesta área com roupas de outras marcas que não as permitidas pela Fifa. Incrível isto. As pessoas são livres.
E os moradores do entorno do estádio Beira Rio poderão até se cadastrar e acessar as suas casas em dias de jogos.
Afinal, reclamar por quê?
Até atiradores de elite estarão posicionados na região para garantir a segurança. Mas...a segurança de quem mesmo? Esta parte eu não decorei ainda (acho que preciso assistir mais televisão).



05 maio 2014

Olho por olho

Ontem, enquanto registrava o assalto de que fui vítima com minha família, um policial me veio com o velho discurso do "cidadão de bem desarmado". Então perguntei para ele: Você acha que eu deveria reagir a um assaltante armado, na frente do meu filho de três anos? Atirar e tentar matar um homem na frente do meu filho? Tudo para defender um carro? Um automóvel é mais importante que a segurança do meu filho?
Estou indignado como qualquer pessoa que sofre violência, mas não entro nesse jogo de "olho por olho, dente por dente". Isto é pré-cristão. Não quero matar o sujeito que me assaltou. Quero justiça, que ele seja preso e que cumpra a pena que lhe for atribuída. Isto não está acontecendo? Então vamos lutar pra que aconteça.
Se ter armas resolvesse, o mundo estaria uma maravilha. Mas não é isso o que vemos nas ruas. Quanto mais armas circulando, mais violência e mortes.

30 abril 2014

Silêncio Catedral

Uma bela canção para celebrar as ruas, a vida e a nossa condenação à liberdade.

"...abre o teu caminho, vem te despejar de ti
vem te pôr pra fora..."






21 abril 2014

A pedidos

Me pedem para escrever sobre Gabriel García Marquez.
Um homem velho que morre de sua velhice não deveria ser chorado.
E se ele criou, inventou, viajou, fez loucuras e até apoiou revolução,
o que se haveria de esperar mais? Que ele apontasse com toda vontade seu dedo médio em direção às câmeras? Pois sim, ele também fez isto.
Sobre García Marquez, vou repetir o que todo mundo já disse.
"Cem anos de solidão" foi uma descoberta, uma viagem, um mergulho nas lágrimas de uma personagem que fizeram inundar toda uma cidade. E aquelas borboletas amarelas, um trem lotado de cadáveres, uma chuva que nunca acabava...
Outro livro que li duas vezes foi "Do amor e outros demônios", que começa com a abertura de um caixão e a surpreendente descoberta de um cabelo que não parou de crescer. Uma paixão proibida.
Um grande que morre abre uma clareira na mata, um espaço para novas criações da natureza.
Se ele é um velho senhor, por que haveríamos de chorá-lo?
Guardemos nossas lágrimas para as crianças que desaparecem na loucura das cidades, na guerra diária de todos contra todos onde o vencedor é ninguém.
E aí de quem me vier de novo com isto de "escreve alguma coisa sobre isso.". Vou mandar tomar...tomar um ar, um livro. Que nada, não "mando" coisa alguma.
Mas posso sugerir a releitura de "Cem anos de solidão". Ah,ainda não leu? Então o que tá esperando?

15 abril 2014

Cães renitentes

Um cão que fica oito dias na porta do hospital esperando seu amigo, um morador de rua.
Um pai, médico, que arquiteta a morte do próprio filho.
Dois fatos distantes que nos emocionam de jeitos diferentes.
Não é difícil entender porque há tantas pessoas que perdem totalmente a crença nos humanos.
O bicho é esquisito mesmo, o bicho gente. Mas vale insistirmos, sempre. 
Os cães, mesmo com tudo que já fizemos com eles, nunca desistiram de nós.


12 abril 2014

Outra pergunta de professora

"Desafio vivo em sala de aula? Isto é filosofia ou é amor à sala de aula?"

É filosofia e é amor.
Desafio sempre.
Amor quase sempre.
Filosofia muitas vezes.

Pergunta de professora


"Sabe Elenilton, coloquei uma caixinha [de perguntas] na minha casa. Tenho medo de abrir agora! O que faço?"
O passo mais difícil você já deu, que é o primeiro. E que coragem a sua!
Só me vem uma resposta: Abre! Há muitos mundos a descobrir ali dentro...


(A propósito: a caixa de perguntas em casa também é sugestão da Marcia Tiburi na apresentação do livro)

07 abril 2014

Gênesis, Sebastião Salgado

E fomos olhar este outro mundo, este nosso mundo intocado. Este mundo a nos transformar sem querer ser transformado.
Sob o olhar sensível do grande Sebastião Salgado nos deixamos levar.
Eis aí um pouco pouquinho do que vimos.




06 abril 2014

O sono dos justos

P- “Quantas pessoas o senhor matou?” R- “Tantas quantas foram necessárias.” P- “Arrepende-se de alguma morte?” R- “Não.” P -“Quantas pessoas o senhor torturou?” R  - “Difícil dizer, mas foram muitos.”
Então, o coronel reformado do Exército Brasileiro Paulo Malhães, levantou-se e foi embora, livre e em paz. Assim como Ustra, ele dorme com a consciência tranquila. Contou à Comissão da Verdade como os presos da “Casa da Morte” em Petrópolis, no RJ, de onde só Inês Etienne Romeu saiu com vida, foram torturados e mortos. Explicou em detalhes, como os militares se livravam dos corpos. Os dentes dos cadáveres eram quebrados e seus dedos cortados; os corpos tinham os abdomens abertos, eram ensacados e lançados ao rio. Ou ao mar, como fizeram com a ossada do deputado Rubens Paiva, assassinado no Doi-Codi do RJ. Paulo Malhães disse muito mais. Afirmou, por exemplo, que a Casa de Petrópolis era chefiada pelo cel. Cyro Guedes Etchegoyen e que recebeu a ordem de se livrar dos restos mortais de Rubens Paiva do cel. Coelho Neto, subchefe do Centro de Informações do Exército (CIE).

Alguém poderia imaginar que figuras como esse coronel sejam a expressão do mal ou mesmo “monstros”. É uma pena que não seja exatamente isto. Se o mal a ser superado pudesse ser reduzido a bandidos deste naipe, viveríamos em uma sociedade especialmente generosa e decente. Afinal, sujeitos assim, retardados morais, ignorantes e sádicos, fazem parte da agência humana e podem ser encontrados em todas as sociedades, mesmo as mais democráticas e civilizadas. O tema a merecer análise e que deveria mesmo preocupar é que tantos, ainda hoje, justifiquem a tortura, relativizem crimes contra a humanidade e se alinhem ao discurso dos golpistas.


A questão, assim, não diz respeito à psicopatia, mas à normalidade e ao que nela se pode intuir como expressão de abismal incapacidade de pensamento. Até as pedras sabem que os militantes da esquerda que enfrentaram a ditadura foram responsabilizados por seus atos. Sem contar com as execuções e com a tortura – política de Estado na época e não “excesso”, como costuma repetir a novilíngua, os ativistas da esquerda – inclusive muitos que se opunham à luta armada - foram acusados, julgados e mandados à prisão. No mais, a esquerda armada acreditava que a divulgação dos seus feitos – assaltos para o financiamento da guerrilha, sequestros de diplomatas para a soltura de presos e mesmo o assassinato de “inimigos”, como na covarde ação que matou o capitão americano Charles Rodney Chandler – estimulariam a população à luta. 

 O negacionismo, entretanto, sempre foi a política oficial da ditadura, para quem não houve torturas, nem estupros de presas, nem desaparecimento de cadáveres. A reação seria simplesmente ridícula não estivessem os torturadores zombando de suas vítimas. No que são amparados pelos colaboracionistas. Pessoas de bem, como sabemos. “Terrivelmente normais”, como diria Hannah Arendt. Graças a elas, à jurisprudência da Casa Grande e ao oportunismo político, pessoas da estatura de Malhães e Ustra seguirão dormindo o sono dos justos.

Texto de Marcos Rolim,
publicado no jornal Zero Hora em 6 de abril de 2014.

31 março 2014

A coragem de Pepe


Nesta noite em que descomemoramos o golpe militar no Brasil,
paro para ouvir um homem sábio.
Ele lutou contra a ditadura uruguaia, foi preso.
Hoje é o presidente mais ousado que há. Do Uruguai e de qualquer parte.
Ousadia que faz falta. Inteligência, eu diria.
Sempre é bom ouvir pessoas inteligentes, para além de qualquer classificação.
E ainda há os seus cães simpáticos que vêm cumprimentar graciosamente os jornalistas...

"E eu morreria de vergonha se não tivesse a coragem de enfrentar o mundo..."

25 março 2014

Uma caixinha democrática

 Desde junho de 2013 a democracia no Brasil tem sido colocada em discussão. Milhares de pessoas em todo país saíram às ruas com suas reivindicações. Há uma percepção geral de que as pessoas não se sentem mais representadas por aqueles que estão nos cargos de decisão. Todos querem dizer sua palavra.
A escola não poderia estar alheia a tudo isto. Há muito tempo que esta crise, esta desconfiança, se lança sobre as instituições de ensino. Se tornaram comuns as notícias tratando de agressões, violências e intolerância dentro de escolas. É comum se ouvir que os professores “perderam a autoridade”.
O livro “A Caixa de Perguntas: Desafio vivo em sala de aula” (Ed. Libretos) não tem a pretensão de analisar este contexto, mas surge num momento privilegiado e acaba por pensá-lo na prática. Trata-se de uma experiência de sala de aula que mexe diretamente com a questão democrática, com o direito à palavra e com a importância do diálogo para a sociedade.
A sala de aula é um microcosmo que espelha muito do que acontece no país. Nela desaguam as tensões sociais todas. E por que não nascer nela a bela subversão das palavras? Com a prática da “caixinha” todas as vozes têm espaço, mesmo aquelas proferidas por quem não se sente à vontade para dizer-se em público. O anonimato das perguntas traz muitos temas de ordem pessoal, que na leitura para o grande grupo se descobrem de interesse de todos e todas.
Uma das grandes conquistas do livro foi ele ter chego até os chamados “neoleitores”. Todos os dias ouço relatos de pessoas que me dizem “é a primeira vez que leio um livro até o fim”, ou “foi a primeira vez que li um livro”. Este, para mim, é o maior sucesso do livro. Por outro lado, não deixa de causar uma certa estranheza o espanto com a caixa de perguntas, tratada como criação do autor. O diálogo é tão antigo quanto a humanidade, e a abertura para ele nas salas de aula deveria ser lugar-comum e não algo inusitado e “original”.
A emoção dos/as estudantes ao ler o livro também é algo tocante. Há uma grande identificação com as temáticas trazidas, sobretudo porque é a própria voz deles e delas que está posta. Esta provavelmente deva ser uma das poucas obras que traz a fala de adolescentes da periferia de forma explícita. Embora existam muitos estudos sobre temas relacionados a este grupo, não é comum que sua realidade e pontos de vista apareçam de forma tão crua.
Famílias inteiras leem o livro, o que não deixa de ser espantoso. Os filhos se reconhecem nas perguntas, às vezes até nas suas próprias (no caso de meus alunos/as). E pais e mães têm na leitura um acesso privilegiado à mentalidade dos adolescentes, suas ansiedades, apelos e linguagens. O diálogo, que começa na sala de aula, chega até em casa. Nada mais democrático.


Elenilton Neukamp



Foto: Clô Barcellos
  

13 março 2014

13 de março

Em 13 de março Jango fez o célebre discurso, anunciando um Brasil que ainda espera por acontecer.
Semanas depois o país desceu a ladeira.
Na Malásia, há alguns dias, um avião desapareceu no ar.
O sonho progressista de Jango também se eternizou assim, em pleno voo.
O Brasil é este sonho, este projeto que insiste em desaparecer no ar.
Contra ele paira a "subsombra desumana" dos torturadores, direitosos e fascistas em geral.
50 anos depois nosso 13 de março traz livros luminosos, como o de Juremir Machado da Silva.
E traz também Sebastião Salgado nos mostrando um Gênesis, um outro planeta, e todas as nações indígenas lutando pela vida.
50 anos depois e insistimos.
O Brasil não cabe em nenhum discurso. Mas sempre começa num ato.

07 março 2014

O quase-poema do lixo

O lixo abunda na calçada
A polícia treinada
nas ruas protege
o lixo

Montes de lixo armado
Mares de gente armada

Garota de Ipanema
coitada
voou para Miami
em busca da paz das lojas
em busca de lixo

O prefeito, que perfeito
criou multa para si mesmo
que doce que lindo que lírico
que lixo

Uma professora feliz
embarcou no concurso
para levar alunos na
fábrica da Cloaca Cola

Montes de gente
Mares de lixo

O lixo abunda na escola
bem protegido
O lixo abunda na calçada
bem ensinado

Lixo, lixo
lixo para ser varrido
Vento laranja para limpar as calçadas
Vento laranja para novas pegadas




Foto: José Maria Arruda (Rio de Janeiro, 07/03/2014)




06 março 2014

Racismo e futebol

Quando eu era pequeno, era "normal" ouvir piadas racistas. Ninguém questionava. E meus amigos negros só baixavam a cabeça ou fingiam não se importar.
Sentia vergonha ao ouvir meu pai fazendo esse tipo de piada.
Isto era no tempo das cavernas, da ditadura militar, das leis que não podiam ser questionadas e dos costumes tornados pedra.
Sei que estamos há mil anos-luz de distância de qualquer coisa que pareça um mundo decente.
Mas damos alguns passos como civilização. Saímos da caverna em vários sentidos.
Racismo é crime. Um aninho de cadeia, dois anos, em regime semi-aberto? É pouco? Claro que é pouco. Mas já é algo.
Quando eu era criança, adorava futebol, jogava, ia emocionado nos jogos. Um dos motivos que me fez criar asco (dos estádios, não do esporte) foi exatamente o racismo.
Você ver, ou assistir na TV, uma torcida imitando macacos quando um jogador negro entra em campo...é algo inaceitável. Em qualquer lugar do mundo, não interessa onde. E depois perceber que ninguém é punido, aí então se torna repugnante.
A tolerância com o racismo é que não pode ser tolerada.
O que aconteceu ontem com o juiz de futebol é um absurdo. E se há quem se leve a sério nesse mundo/negócio do futebol, que proteste contra isto e exija punição.
A mesma indignação vale para a homofobia no futebol, que segue gerando violência dentro e fora dos estádios. Também aí precisamos de lei, porque há uns "homens de Neanderthal" para os quais não há razão nem argumentos.

03 março 2014

Millôr e virgindade na TV

A televisão tem essas coisas.
No intervalo da entrevista com o Millôr (reprisada hoje na Cultura), fui ver o que se passava nos outros canais.
Sou leigo nestas coisas de tv, então fiquei "zapeando".
Me detive uns minutos num deles. Era um programa religioso, ou algo do gênero topa tudo por dinheiro.
E havia um apresentador, um pastor e uma sexóloga. O apresentador fazia gracejos para a sexóloga, com certo esforço para se conter.
Comentavam o "dilema" de um telespectador.
O drama do rapaz era o seguinte: na noite de núpcias havia descoberto que sua noiva, cristã, não era mais virgem...e há dois meses ele já não sabia o que fazer.
Além do tema intelectualmente instigante, o som do programa chegava segundos antes da imagem.
Muito interessante toda aquela composição.
No intervalo seguinte, o apresentador estava vendendo um produto, junto de outro homem. Parece que o dilema da virgindade já havia sido solucionado,
para a alegria do noivo que pode agora enfim dormir tranquilo.
Ou não.

01 março 2014

As cores



Fiquei pasmo hoje diante de um lugar que de
tão perto nem parecia ser daqui. Verde, verde.
Nos olhos do meu filho uma estrada estreita
me levando até a infância.
Um cão enorme que seguia uma carreta de bois
sobre uma trilha serpenteando em "s".
E diante dos nossos olhos o amarelo do milho
nos lembrando o eterno mistério de tudo que há.

Um rio, marrom.


24 fevereiro 2014

Vândalo News

A cobertura ia bem, acobertando a verdade..."até que um pequeno grupo de jornalistas resolveu cometer atos de jornalismo. Eles foram contidos pela polícia editorial..."

Ótimo!



20 fevereiro 2014

De trem

Há uns dias atrás o Érico disse: "Eu nunca andei de trem em toda a minha vida".
Então pegamos o trem e fomos visitar o Irmão Henrique Justo, 
no La Salle em Canoas, e tiramos aquela foto que ficou na promessa
durante a Feira do Livro de Porto Alegre (o querido Marco Nedeff já não estava mais lá na sessão de autógrafos).
Ele ficou entusiasmado com o livro "A Caixa de Perguntas", me disse esperar que muitos outros professores/as se aventurem com experiências deste tipo pelo Brasil.
Henrique Justo tem 92 anos, e segue animado, lúcido, ligado no mundo. Lê muito, então tem sempre coisas interessantes para contar e discutir. Está com um problema no tornozelo, por isso anda mais caseiro. Até dezembro seguia dirigindo normalmente.
Autor de 26 livros, foi professor durante décadas nas áreas de Psicologia e Pedagogia e tem uma história e uma cultura invejáveis.
Passaram por suas aulas e cursos figuras de tendências distintas, desde o filósofo da libertação Antonio Sidekum, até a escritora conservadora Lya Luft, o jornalista Walter Galvani...
Sua marca como educador é o humanismo, e suas aulas democráticas e abertas.
Foi aluno e amigo do psicólogo americano Carl Rogers, e garante que no Brasil há muita incompreensão em relação à "liberdade para aprender".
Estamos aí, três gerações na foto. E as janelas todas abertas.
Oxalá todos nós tenhamos saúde e lucidez para chegarmos assim aos noventa e dois também!




Três pedidos e um sonho


19 fevereiro 2014

Politicanalhas e administraidores

Governos bancando eventos de mega corporações.
Isto sim podemos chamar de vandalismo. Pornografia.
"Tô na pista pra negócio", este é o funk da politicanalhice brasileira.
Politiqueiros. Capachos. Administraidores.
Depois ficam por aí uns comentaristas chapa-branca fazendo de conta
não entender por que as pessoas vão pras ruas, sem partido,
sem liderança tradicional, sem rótulos.
Estes políticos que estão aí continuarão, cada vez mais iguais. Eles e o seu coro de contentes.
Mas a falência desta forma de política levará a outras formas de organização,
outros jeitos de ser e se exprimir que já estão aí/aqui.
Até estas formas se cristalizarem de forma mais precisa, haverá violência.
Não por que eu ou você queiramos, mas porque a violência acontece quando o espaço do diálogo desaparece.
Só não entendeu ainda quem está olhando o mundo pelo retrovisor, esperando o velho líder que a estas horas está namorando com o antigo inimigo.

18 fevereiro 2014

Cinema argentino

Quando eu crescer
quero escrever
do mesmo jeito
que os argentinos
fazem filme.
Conseguem tornar grande
o menor ato,
e numa pequena história
desnudam toda a humanidade.

15 fevereiro 2014

Murar o medo (Mia Couto)



O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:
“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”
E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto

14 fevereiro 2014

Nas ruas

nas ruas
um gato deslizava
entre os carros
 magro

nas ruas
modelos assombravam outdoors
com suas caras
espantalhos

nas ruas
um palhaço
enchia bêbado azuis
balões

nas ruas
insetos
incertos
imensidões

nas ruas
um cego na chuva
anunciava sentado
loterias

nas ruas
um homem cortês
mostrou-me o chão
cuidado

nas ruas
chovia
nas ruas
o vento
nas ruas





12 fevereiro 2014

Globo, PT, Copa e estas coisas

Hoje, na feira, ouvi os comentários dos feirantes sobre o fato do momento.
Aí você vê como funciona o jogo todo.
Você não precisa ver TV para saber o que ela passa: as pessoas ficam repetindo como papagaios a versão televisiva (em geral sem fazer pergunta alguma sobre).
A exploração da morte do cinegrafista é ótima para a Globo e o governo, grandes interessados em que os protestos contra a Copa não cresçam.
Negócios são negócios, já diria o pilantra. E pessoas nas ruas atrapalham a imagem vendida para o exterior.
O governo se preocupa com as agências internacionais, porta-vozes do Deus Mercado. Por isso vale a pena até dar rasteira nos seus próprios aliados, como o governador do RS que ficou a ver navios...
Segundo o jornalista Mino Carta (da Carta Capital), jamais a Rede Globo
ganhou tanto em publicidade quanto agora, no governo Dilma.
Isto deve ajudar a explicar por que a Globo e o PT fazem o mesmo discurso, repetem as mesmas acusações contra quem se manifesta.
Mas sem ilusões: fosse o PSDB e a coisa seria a mesma. Porque os políticos daqui são apenas cabeças de área de interesses maiores, situados sabe-se lá onde e sempre em nome do dinheiro.
Infelizmente estamos assim.
Paro por aqui, vou seguir brincando com o Érico. Inté.


08 fevereiro 2014

Sou mais samba


"Menino, tome juízo
escute o que vou lhe dizer
o Brasil é um grande samba
que espera por você
podes crer, podes crer!"

    Candeia

em "Em sou mais samba"



Sobre a dor

"O samba é a tristeza que balança"

      Vinicius

07 fevereiro 2014

Perdemos o Nico

Grande pessoa que perdemos, grande artista. Nico Nicolaiewsky.
Lembro que a primeira vez que conversamos foi num show dos Mulheres Negras,
no Santander Cultural.
Impossível não notar a familiaridade do Nico com o humor e originalidade do Mauricio Pereira e do André Abujamra.
Me chamou logo a atenção sua gagueira, que ele fez questão de reafirmar brincando o tempo todo com ela. Era um sujeito agregador, que prestigiava os artistas daqui e fazia questão de tentar aproximações.
Doce pessoa.
Adoro Tangos e Tragédias, como todo mundo. Mas me tocam mesmo os discos solo, lindos e tocantes. Tantos os discos do Nico quanto aquela obra do Hique Gomez, do homem banda.
"Onde está o amor?" nós cantamos alto aqui em casa. Só a mediocridade do esquema das rádios (jabá) para explicar por que várias delas não viraram sucessões.
"Feito um picolé no sol", do primeiro disco, é obra prima.
Nico conheceu o sucesso, e merecia muito mais.
Cedo, cedo demais.

30 janeiro 2014

Dor elegante

E quem há de duvidar, meus caras leitores caros leitoras... que
o homem com uma dor
é muito mais elegante?
Há belas versões deste poema canção, que acabou se tornando a melhor tradução do grande Itamar Assumpção.




Por alguma obra do acaso ou da imperícia não consigo colocar aqui outras versões: a embalada com Andreia Dias e Arnaldo Antunes, o próprio Itamar (em sua casa e na última apresentação ao vivo...impressionante).



"Dor elegante" (Paulo Leminski/Itamar Assumpção)








14 janeiro 2014

Noites claras e beijos radioativos

A lua cheia se aproximando. Ela se anuncia pelas noites claras, com aquele "verniz da madrugada".
Sou tão seduzido por este espetáculo da natureza que poderia ficar todas as madrugadas apenas contemplando. Mas aí vem as horas por dormir, o Érico que irá acordar cedo e com toda a pilha pra brincar, correr, jogar, tomar banho de mar...
As férias também tem banhos de leitura. Li o Vargas Llosa, gostei, começando a ler outro. E também Plutarco, Montaigne, "A noite dos cabarés" do Juremir Machado (muito bom).
Tentando escrever. Enredado no próprio labirinto literário que inventei. "As pessoas são uns lindos problemas..." já disse o Sergio Sampaio. Os personagens também.
Encontrando amigos e amigas, como deveria ser todo o ano e sempre. Conversando. Todos os temas, tudo.
Outro dia me aventurei a ligar a máquina, o olho que quer ver pela gente. Está em todo o lugar, é onipresente. Ditadura da televisão: nas casas, nos bares, nas filas de espera, nos ônibus.
Chegará o dia em que grupos enormes de gentes invadirão os lugares para simplesmente desligarem os aparelhos de tevê. Punk utopia. Uma pequena desobediência, mas ainda assim perigosa. Desligar as tevês, desconectar fios, desligar os sinais. Nossa, mas aí já estou querendo surrealismo demais para uma época tão pobrinha. Estes bons sabotadores já existem, é claro, mas o sono é coletivo e quase ninguém percebe.
Meia hora de tv aberta e o sujeito já está informado, deformado, desinformado, enquadrado. Assim me senti. Um bobão perdendo seu tempo precioso. Mas eis que lá no meio da antena parabólica surge um debate sobre energia nuclear. Coordenado pelo Fernando Collor. Collor? "O que é isto jovem?" Ninguém mais lembra quem ele é. Amnésia é o nome da perda de memória, total ou parcial.
Nas passeatas chamávamos Collor de ladrão. Agora alguns líderes de passeata são seus aliados, amigos até. Dão até caronas de avião. O amor é lindo. Une, perdoa, passa a mão (literalmente e nos figurados sentidos). Agora sejamos todos irmãos para o bem da nação e pode passar a sacolinha, amém. Ele é presidente não sei do quê no Senado. O debate segue. Um velho burocrata do governo defende com toda a vontade as usinas nucleares. Uma delas será seria no sertão de Pernambuco. Me senti super convencido quando ele disse que o Brasil está mais protegido de acidentes nucleares do que o Japão. Este cara merece um beijo. Um beijo radioativo, só pra ver o que é bom. Que nada! Nem este diabo velho merece, e além do mais radiação é veneno que fica.

Já falei demais e ainda nem disse quase nada. Por sorte temos as noites inspiradoras, outros amores que não os financeiros, as crianças, os reinícios. E jeitos de ver a coisa que ousam até tocar na poesia.
Até mais então. Vou dar outra olhada nesta noite linda.

13 janeiro 2014

Sonhos estranhos

Quando estou em férias costumo sonhar muito, muito além do habitual.
Outro dia tive um pesadelo.
Sonhei que lia no jornal uma notícia absurda.
Nos shoppings centers de São Paulo a polícia revistava jovens de periferia,
impedindo que muitos deles entrassem nas catedrais do capitalismo, pelo simples fato de serem quem são, de virem de onde vem.
Havia inclusive ordens judiciais permitindo isto.
Parecia que em pleno século XXI voltávamos à escravidão.
O mesmo sistema que incutia na cabeça dos adolescentes pobres desejos de consumo e ostentação, agora se via sem saber o que fazer: eles também queriam participar daquela encenação, daquele jogo tolo de consumir e ostentar.

Nossa! Como a mente da gente cria cada coisa maluca, estúpida mesmo.

02 janeiro 2014

Férias

Por um tempo estarei ausente do blog.
Reencontro esperado com o grande oceano. Poseidon.
Seguirei escrevendo, mas fora das áreas de cobertura.
Logo nos lemos aqui.