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06 abril 2014

O sono dos justos

P- “Quantas pessoas o senhor matou?” R- “Tantas quantas foram necessárias.” P- “Arrepende-se de alguma morte?” R- “Não.” P -“Quantas pessoas o senhor torturou?” R  - “Difícil dizer, mas foram muitos.”
Então, o coronel reformado do Exército Brasileiro Paulo Malhães, levantou-se e foi embora, livre e em paz. Assim como Ustra, ele dorme com a consciência tranquila. Contou à Comissão da Verdade como os presos da “Casa da Morte” em Petrópolis, no RJ, de onde só Inês Etienne Romeu saiu com vida, foram torturados e mortos. Explicou em detalhes, como os militares se livravam dos corpos. Os dentes dos cadáveres eram quebrados e seus dedos cortados; os corpos tinham os abdomens abertos, eram ensacados e lançados ao rio. Ou ao mar, como fizeram com a ossada do deputado Rubens Paiva, assassinado no Doi-Codi do RJ. Paulo Malhães disse muito mais. Afirmou, por exemplo, que a Casa de Petrópolis era chefiada pelo cel. Cyro Guedes Etchegoyen e que recebeu a ordem de se livrar dos restos mortais de Rubens Paiva do cel. Coelho Neto, subchefe do Centro de Informações do Exército (CIE).

Alguém poderia imaginar que figuras como esse coronel sejam a expressão do mal ou mesmo “monstros”. É uma pena que não seja exatamente isto. Se o mal a ser superado pudesse ser reduzido a bandidos deste naipe, viveríamos em uma sociedade especialmente generosa e decente. Afinal, sujeitos assim, retardados morais, ignorantes e sádicos, fazem parte da agência humana e podem ser encontrados em todas as sociedades, mesmo as mais democráticas e civilizadas. O tema a merecer análise e que deveria mesmo preocupar é que tantos, ainda hoje, justifiquem a tortura, relativizem crimes contra a humanidade e se alinhem ao discurso dos golpistas.


A questão, assim, não diz respeito à psicopatia, mas à normalidade e ao que nela se pode intuir como expressão de abismal incapacidade de pensamento. Até as pedras sabem que os militantes da esquerda que enfrentaram a ditadura foram responsabilizados por seus atos. Sem contar com as execuções e com a tortura – política de Estado na época e não “excesso”, como costuma repetir a novilíngua, os ativistas da esquerda – inclusive muitos que se opunham à luta armada - foram acusados, julgados e mandados à prisão. No mais, a esquerda armada acreditava que a divulgação dos seus feitos – assaltos para o financiamento da guerrilha, sequestros de diplomatas para a soltura de presos e mesmo o assassinato de “inimigos”, como na covarde ação que matou o capitão americano Charles Rodney Chandler – estimulariam a população à luta. 

 O negacionismo, entretanto, sempre foi a política oficial da ditadura, para quem não houve torturas, nem estupros de presas, nem desaparecimento de cadáveres. A reação seria simplesmente ridícula não estivessem os torturadores zombando de suas vítimas. No que são amparados pelos colaboracionistas. Pessoas de bem, como sabemos. “Terrivelmente normais”, como diria Hannah Arendt. Graças a elas, à jurisprudência da Casa Grande e ao oportunismo político, pessoas da estatura de Malhães e Ustra seguirão dormindo o sono dos justos.

Texto de Marcos Rolim,
publicado no jornal Zero Hora em 6 de abril de 2014.

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