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02 outubro 2021

Fica filosofia, sai retrocesso!

Segundo o que me disse um livro, as antas são mamíferos enormes e pesados. Criam um caminho no meio da mata que atravesse sua comida e chegue até alguma fonte de água. O caminho das antas é seguro. Todos os dias elas retornam por ele até a comida e a água. As onças vasculham muitos caminhos. E gostam de comer antas. O caminho das antas até pode ser seguro, mas no momento em que uma onça o encontra não há mais nenhuma saída. A onça sabe que basta apenas deitar na moita e ficar esperando. Antas são previsíveis. Onças são implacáveis. Brinco com os alunos desenhando um caminho de anta no quadro. E o riachinho mal rabiscado lá embaixo, onde ele sempre dá. A metáfora pode ser pobre, confesso. Porém, o objetivo é nobre: Ressaltar a importância das aulas de filosofia. Não cabe à Filosofia mostrar caminho nenhum a ninguém (para isto temos os condutores de almas em vários formatos e preços). Ela nos abre a possibilidade de vislumbrar outros caminhos, atalhos cheios de descobertas. Mostra um mundo onde só havia um muro, e aí estou sendo quase literal. Na sala de aula ela trabalha conceitos, que podem vir da tradição do pensamento ocidental ou da linguagem da quebrada. Lembro agora de um aluno, na Restinga, que depois de uma rica discussão durante a aula veio me comunicar uma decisão. “Sôr, sabe eu pensei...não vou mais trazer o ferro pro colégio”. Aí entendi o fato de que ele passava o tempo todo com a mochila nas costas, mesmo durante o intervalo. Andava armado por medo. Um medo que foi desmontado a partir das falas dos próprios colegas, no meio de uma aula de filosofia. Aquela discussão, daquela forma, só aconteceria naquela aula. Porto Alegre foi uma cidade pioneira quando resolveu incluir no currículo das escolas municipais a disciplina de filosofia. Uma bela oportunidade oferecida a jovens de periferia, no ensino fundamental. Afinal, por que a filosofia deveria ser apenas privilégio dos matriculados em escolas de classe média alta e ricos? As aulas de filosofia muitas vezes antecipam questões que depois se tornam assuntos de todos. Nos últimos dez anos um dos grandes temas foi a depressão, em suas mais variadas expressões. A depressão como doença, como perda, ansiedade, e até como a tristeza de não poder sair de casa à tarde porque o traficante da rua proibiu. Quando estudamos, por exemplo, a mediania de Aristóteles, é a vida que surge. Como encontrar o equilíbrio entre dois excessos? Onde está o meio termo entre o medo de sair do próprio quarto (covardia) e a sensação de que posso fazer qualquer coisa na rua (destemor)? Como chegar a uma boa alimentação, que não seja nem exagero no comer, nem passar fome para tentar ter “um corpo perfeito”? A vida acontece e é pensada enquanto se discutem grandes temas e filosofias variadas: Epicuro, Platão, Simone de Beauvoir etc. Outro dia, uma aluna de C10 (corresponde em idade a antiga sexta série), me disse que havia pensado sobre as coisas que ela comprava (e que não precisava) depois de uma aula sobre Diógenes. Durante a aula, em nenhum momento foi utilizada a palavra “comprar”, nem tampouco “consumo”. O pensar acontece como construção a partir da provocação trazida pelo filósofo. Não é um discurso do professor. Há várias formas de trabalhar esta disciplina nas escolas, e a variedade de abordagens deve estar próxima ou igual ao número de professores e professoras. Isto é uma riqueza. O que há em comum é a tradição, a própria história da filosofia e os clássicos. Tudo o mais são experiências de aprendizado. Registrei uma destas experiências de sala de aula no livro “A Caixa de Perguntas” (Libretos), que enviei recentemente para a secretária de Educação de Porto Alegre. Outro dia podemos falar sobre ele. Agora preciso retornar às antas, onças e caminhos mais urgentes. Não sabemos exatamente por que, mas a prefeitura de Porto Alegre, através de sua Secretaria de Educação (SMED), resolveu simplesmente retirar a filosofia do currículo das escolas. E não só. História e Geografia também tem seus horários reduzidos. Não sei, mas corremos aí o risco de construir um caminho de anta perfeito. Para ocupar este vazio curricular criado, ela pretende aumentar a carga horária de Português e Matemática, e inserir como um período fixo o Ensino Religioso (que é facultativo). Em troca, a prefeitura promete criar “possibilidades de um um trabalho interdisciplinar de Filosofia desde os anos iniciais...”, o que significa que não deve acontecer nada. As pessoas gostam de usar certas palavras para disfarçar o que está evidente. A única justificativa usada é “a adequação à legislação vigente”. Mas aí temos um outro problema: a prefeitura usa a legislação estadual e esquece que neste sentido somos regidos pelo Conselho Municipal de Educação. Talvez a atual administração queira deixar suas garras, suas marcas na educação da cidade. Como uma onça? Não creio. Só se for uma onça que queira agradar às antas que acreditam nas tolices dos grupos de terra plana do WhatsApp. Como aquela mãe que retirou seu filho da escola ao descobrir que ele era gay. Segundo ela, o filho teria sido ensinado a ser assim. Economia de recursos? Também não parece, pois precisariam contratar professores. Além disto, acabam de nos roubar vários direitos e anos de aposentadoria, e já haviam destruído nosso plano de carreira. Estamos há vários anos com os salários congelados. Por que então? Como diria um amigo mais velho, “só sei que nada sei”. Outro argumento seria que precisamos de mais Português e Matemática, porque estas disciplinas são cobradas nas provas nacionais de avaliação. Esta é uma visão pobre de educação, por várias razões. E mais horários poderiam ser oferecidos no contraturno como aulas de reforço, laboratórios de aprendizagem etc. De qualquer forma, é preciso dizer: as coisas são mais complexas. Não é apenas uma questão de tempo, mas também de fome, miséria, contexto. Basta observar os mapas de resultados. Quanto mais periférica a escola, piores os resultados. Retirar a filosofia não aumentará índice algum. Só irá empobrecer o repertório oferecido. É como prometer melhorar a alimentação de alguém, retirando um dos ingredientes do prato. Vivemos um momento estranho. Em tempos bem recentes, os políticos enchiam a boca falando em educação. Educação era a solução de tudo, e todos prometiam investir nela. Nas propagandas o fulano “construiu tantas escolas infantis”, “abriu tantas vagas nas escolas”, “melhorou a merenda escolar”. Imagens de crianças brincando felizes e de escolas limpinhas e reformadas ocupavam a propaganda eleitoral. As mães apareciam sorrindo e elogiando. Agora talvez teremos prefeitos babando em frente às câmeras, aos gritos: “Eu acabei com essa farra de filosofia!”, “Eu proibi aula de história..pra que estudar história?”, “Ninguém precisa de geografia”, “Pensar é coisa de fresco!”, e por aí vai. Sempre com uma turba de alucinados para aplaudir. Triste é perceber que pessoas com formação em educação se prestem a fazer o serviço sujo, tentando passar verniz sobre dejetos. Não sei a quem pensam enganar. Quando comecei meu caminho como professor, há 25 anos atrás, havia uma espécie de clichê no ar. A ideia de que ao poder, ou aos “poderosos” não interessava um povo educado. Hoje percebo o quanto fazia e faz sentido. O empobrecimento de educadores e educadoras é um projeto, assim como a tentativa clara de eliminação de tudo o que lembre reflexão. São retrocessos bem planejados. Estamos diante da tentativa de mais um, na cidade que já foi um dia um porto alegre para a cultura e a educação. Fica Filosofia, sai retrocesso! Elenilton Neukamp, professor de Filosofia da rede municipal de Porto Alegre.

Um comentário:

  1. Este texto foi publicado na Revista (parêntese), em sua edição 95, em 02/10/2021.

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