O solitário
Zaratustra é um solitário não porque viva como um eremita, mas
porque é um criador. Vale lembrar que há uma espécie de inversão
na ideia da caverna, tão cara para os professores e a educação no
Ocidente. Na alegoria de Platão, a caverna corresponde à ignorância
das trevas e cabe aos filósofos serem como aquele que rompeu os
grilhões e saiu para ver a luz do sol, da razão.
Em Nietzsche a caverna é exatamente para onde vai o criador.
Zaratustra sobe até a caverna, onde ficará por dez anos solitário.
No caminho é visto por um velho que percebe que ele está carregando
cinzas. Provavelmente são as cinzas do Deus morto. Destas cinzas ele
produzirá chamas. Em outras palavras, do niilismo passivo da perda
total do sentido ele criará outros valores e ações que valorizem a
vida através de um niilismo ativo, criador.
A solidão dele não é isolamento, é criação. E sempre se dá no
alto, pois somente o solitário pode suportar as vertigens que a
altitude provoca.
Ser solitário é poder dar a si mesmo o seu bem e o seu mal, criar
seus próprios valores. Em vez de perder-se em meio à homogeneidade
das multidões, do rebanho, ele escolhe a singularidade da solidão
dos cumes. É nela que pode buscar a superação dos valores
demasiado humanos das massas, o caminho para o além-do-homem ou
super-homem.
Por paradoxal que pareça, os discípulos de Zaratustra são
exatamente os solitários, os que se elegeram a si próprios, aqueles
que servirão como pontes para o além do humano:
“Quedai-vos vigilantes e à escuta, ó solitários! Chegam ventos,
do futuro, com misterioso bater de asas; e trazem boa nova aos
ouvidos finos.
Vós, os solitários de hoje, os segregados, sereis, algum dia, um
povo; de vós, que vos elegestes a vós mesmos, deverá nascer um
povo eleito, e dele – o super-homem.” (Da virtude dadivosa, pág.
91).
A pregação de Zaratustra é voltada para o futuro, num tom
esperançoso e visivelmente parodiando trechos dos evangelhos
cristãos. Entretanto, logo após dizer isto ele pede que os chamados
discípulos se afastem dele, pois “retribui-se mal um mestre quando
se permanece sempre e somente discípulo”.
“Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra?
Sois os meus crentes; mas que importam todos os crentes!
Ainda não vos havíeis procurado a vós mesmos: então, me achastes.
Assim fazem todos os crentes; por isso, valem tão pouco todas as
crenças.
Agora, eu vos mando perder-vos e achar-vos a vós mesmos; e somente
depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vós.” (p. 92)
O discípulo não deve imitar o mestre, ser ou pensar igual a ele. O
discípulo deve superar o mestre no caminho do além-do-homem, do
super-homem. Esta pregação Zaratustra havia feito primeiramente ao
povo, na praça, depois de voltar de sua caverna. Agora ele a faz aos
solitários, ao povo dos solitários.
No prólogo da Gaia Ciência, alguns anos antes, ele há havia
escrito:
“Agrado-te, os meus discursos atraem-te,
queres seguir-me e seguir o trilho dos meus passos?
Segue-te fielmente a ti mesmo.
E assim me seguirás...muito suavemente, muito suavemente.”
O aforismo 443 de Aurora, diz o seguinte:
“Sobre a educação – Paulatinamente esclareceu-se, para mim, a
mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação:
ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina – a suportar a
solidão.”
Passados quase um século e meio depois que Nietzsche lecionou, é
evidente que seus piores sonhos se tornaram realidade. A massificação
da cultura, a educação e formação para o mercado...
É possível a solidão (nos termos de Nietzsche) em nosso tempo?
Como podemos viver a solidão quando até estar sozinho precisa ser
“compartilhado”?
Solidão num tempo em que o imaginário é colonizado? Em que somos,
como sociedade, produtos de um aparelho que funciona como prótese de
nosso olho?
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