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26 fevereiro 2021

Sidekum

 Antônio Sidekum nos deixou ontem. Como tudo nesta pandemia, até a terrível notícia da morte de um amigo chega de um modo estranho. 

Muito falamos sobre a morte, eu e o Antônio. Tema dos existencialistas. Apesar de ter sido seminarista e de ter por toda a vida contato com religiosos, ele era ateu. Radicalmente ateu, eu diria. Porém, colocava em prática o que defendia em sua produção intelectual: o diálogo, a abertura para o outro (este estranho).

Conheci o filósofo Antônio Sidekum pelo caminho da política. Acho que é a primeira vez que falo sobre isto, assim publicamente. E não lembro se voltamos a este tema. Ele me procurou, isto lá pelos anos noventa, para fazer parte do Partido Verde. Eu era presidente do partido na cidade, e ele pretendia entrar na discussão pública. Maluca a vida. Lembro que fiquei umas duas horas esperando por ele, durante uma aula incompreensível para mim. Conversamos sobre os problemas do mundo, a natureza... Por ser um cara introvertido, esse projeto não andou. Assim como o PV. 

Depois fui seu aluno de Filosofia, e foi onde nossa amizade iniciou. 

Antônio Sidekum foi um dos meus grandes professores, um de meus mestres na filosofia. Professor incrível. Sempre ligava o assunto, ou o filósofo abordado, com a história e a cultura da época. Sempre havia a dica de um filme para entender melhor o ambiente daquele autor. Um livro, vários livros. E música. "Para entrarem no clima do pensador, escutem o movimento tal do autor tal...". Uma pessoa de uma cultura vasta. E de uma generosidade vasta também.

Suas aulas não tinham intervalo, e ninguém sentia falta. Íamos direto, do início até o último minuto. Quando a disciplina era na sexta, muitas vezes a aula seguia fim de semana adentro. A turma era convidada a fazer um banquete filosófico. No outro dia estávamos lá em sua casa, cada um levava algo para comer, uma garrafa de vinho, algo para alegrar o coração. Tudo se discutia ali. E ele trazia livros, textos originais. Até quando falava em comida tinha o que ensinar. Ninguém saía de mãos ou mente vazia. Com o tempo, nós mesmos passamos a organizar estes banquetes, onde escolhíamos um autor para ler e discutir.

Na sua casa de São Leopoldo havia uma torre de observação, onde ele ia nas noites de tempestade. Era uma espécie de refúgio. 

Criou uma editora, a Nova Harmonia, por amor à cultura e ao conhecimento. Investia seu dinheiro no que acreditava. Por ela, publiquei meu primeiro livro, sobre Nietzsche. O segundo, foi uma história que ele me encomendou, sobre um monge e uma freira. Um amor proibido. O livrinho era vendido juntamente com o licor de nozes, delicioso, que ele produzia. A história do amor proibido talvez tivesse relação com sua dificuldade em lidar socialmente com seus amores. 

Tínhamos um projeto de livro para registrar a sua história. Antônio foi torturado durante a ditadura, quando era estudante de filosofia em Viamão (RS). Depois da prisão e da tortura, acordou em plena Praça da Alfândega (Porto Alegre), nu e todo machucado. Demorou para lembrar quem era. Esta experiência terrível era um trauma. Um dia me mostrou os documentos, que ele conseguiu através da OAB de São Paulo, que os serviços da repressão fizeram sobre ele. Eram fotos, relatos de gravações, fichas policiais. Tudo em detalhes. Até festas em que esteve, conversas em acampamentos de juventude. Sempre havia um espião, um verme à espreita. O fato dos torturadores não terem sido condenados lhe causava repugnância. 

Lutava pelos direitos humanos e sempre a favor dos "condenados da terra". Isto já basta para engrandecer um homem.

Estou aqui escrevendo várias coisas. Mas o que quero dizer mesmo é que dói perder um amigo. Sua obra, seu trabalho intelectual segue vivo em sua produção, nos livros que escreveu, editou e ajudou a divulgar. As longas tardes de conversas, as piadas, a amizade, ficam na memória. No coração.

Triste. Porém, "é preciso arrancar alegria ao futuro". 

Antônio Sidekum, presente!


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