A lona toda furada, como se fosse vítima de uma chuva de estrelas quentes, denuncia a idade e
os lamentos do tempo. Mas são sorridentes os seres que habitam o
espaço mágico do picadeiro. Sem palco, sem jogos hipnóticos de
luzes, sem propaganda, os artistas ainda iluminam o sonho de pequenos
olhos. Na saída olhei o horizonte que se via dali. E eram nuvens
carnosas que animavam o frio da noite.
Das sombras e das sobras do que
foi um dia um bom alojamento surge o homem. Seu rosto trilhado de
caminhos e habitado de olhares revela toda a grandeza de sua idade.
Suas mãos são geladas e seu espírito alegre agradece-me a ajuda, o
acaso formoso que nos pôs ali, frente a frente, dois homens assim
tão distintos e tão próximos. Seus cabelos são levemente
compridos, como se quisessem denunciar uma rebeldia que já não se
necessita estravagante. Ele é um palhaço. Normal assim, como um ser
humano que perdeu suas tintas deslumbrantes, poderia até fazer
chorar. Conta-me das últimas desgraças, essas pequenas bravas que
preferem pôr-se em nosso caminho provocando-o como adolescentes
cruéis. No estado de Santa Catarina o furacão triste jogou-os para
longe, sem dó algum dos cãezinhos, pombas, nem do palco carcomido
de passos e passos e saltos. Fugindo dele acabaram boiando nas
enchentes mais ao sul. E agora o começo de novo. E eu uma mão, mais
uma.
“A grandeza está exatamente
em não saber o que vem amanhã, é disso que vivemos”. As palavras
do homem jogaram minha cabeça para girar no carrossel. Os pedaços
sonolentos dela foram até o carro e seguiram caminho até o trem,
até as ruas vazias de gente, até a casa. Crianças alegres comem
agora suas maçãs açucaradas e no seu lambuzo infantil nem percebem
que ainda me quedo ao lado, como um fantasma de tudo que eu não fui.
Uma parte do que sou e outra do que poderia ter sido navegam nos
aplausos do circo.
Teatro
do Teléco. A criança que eu fui reclama seu lugar no futuro e aos
prantos rasga o meu peito e pede passagem. Eu estou aqui.
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