Ana
viu o futuro e ele era um jovem franzino que parecia fantasiado com
seu minúsculo bigode.
Chegou-se
de uma cidade distante. Era de um tempo em que se acreditava que o
exército transformava um menino em um homem durante um ano de
exercícios e humilhações constantes.
Então
assim já homem feito foi logo combinando com o dono da casa o
casamento com a filha.
Talvez
tenha visto a moça uma vez. Ela, entretanto, nunca o vira antes.
Por
uma fresta entre as tábuas velhas da parede Ana viu aquele a quem o
mundo escolhera como seu marido. O mundo dos homens do início do
século XX.
Ao
lado dele, com o primeiro filho, seu olhar rebelde de criança
assustada quase dá cor ao preto e branco da fotografia.
Minha
amiga não gostava de sua avó.
Não
conseguia entender porque a velha mulher era tão rude e estúpida
com seu querido avô. Ele sempre tão meigo, tão bom, a brincar com
os netos.
Enquanto
o avô dava atenção às crianças, a velha bruxa ficava prostrada
em seu canto, quieta e raivosa. Ela era má. Ele sem dúvida
representava o bem. Não havia dúvidas de quem seria um dia
condenado por deus. Cada palavra que ele lhe dirigia era respondida
com uma agressão verbal. Às vezes ela sequer falava. Sua resposta
era um grunhido.
Quando
o avô morreu foram prestadas todas as homenagens que se prestam a um
bom cristão. E é claro que não faltaram as flores para dar um tom
de esperança e vida ao cortejo fúnebre.
Dias
depois a avó quebrou um silêncio de décadas e reuniu os netos para
contar-lhes um segredo.
Quando
era ainda uma menina de doze anos, distraída com suas bonecas e
brincadeiras, foi atacada por um homem mais velho quando voltava da
roça. Violentada e violada brutalmente, voltou para casa
arrastando-se entre o sangue e a vergonha.
Como
um pequeno animal acuado, tremia desesperada quando caiu nos braços
da mãe. Estava quase irreconhecível.
A
boa sociedade não teve dúvidas do que fazer. Que se colocasse uma
pedra sobre o assunto. O casamento e o silêncio eram a melhor
solução.
Minha
amiga passou a amar a sua avó, e o avô teve sua segunda e pior
morte.
Naqueles
anos – nas cidades iluminadas que Ana e a avó de minha amiga não
conheciam - milhares de mulheres coloriam as ruas com suas cores e
desejos. Não queriam mais ver o mundo através das frestas, nem
tampouco ser obrigadas a casar com estupradores.
Começava a maior de todas as
revoluções: a revolução das mulheres.
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