Total de visualizações de página

23 março 2010

A saudade é uma cadeira vazia

Me diz meu amigo que a saudade é uma cadeira vazia. Você olha e ela está ali, ao lado, como a lhe dizer de algo ou de alguém. Saudade é uma palavra estranha de tão bonita. Ela fala de tantas coisas, de tantos sentimentos, que se perguntar o que significa a pessoa fica gaguejando e não consegue dizer. Saudade é uma palavra que não cabe. Então se diz que não há lugar pra tanta.
A saudade é tão brasileira que não tem tradução. Quer dizer, não tinha. Os ingleses andaram inventando de colocar ela em seus dicionários. Mas continuam sem ter o prazer e aquele gostinho da coisa dita e repetida em alto e bom som. Uns chamam a saudade de parafuso enferrujado, que quanto mais enrosca menos vai. Outros colocam-na no terreno impróprio e improvável do vazio. Eu prefiro representá-la como meu amigo: numa cadeira vazia, ali ao lado. Esperando aquela coisa, sensação, momento ou pessoa que talvez nunca virá sentar.
Nos porões dos navios negreiros a saudade vinha tremendo de frio e de medo. Amontoados como coisas, homens e mulheres procuravam no úmido e no escuro imagens luminosas das terras de onde acabavam de ser roubados. Em alguns lugares, os governantes que os vendiam faziam com que passassem em torno de troncos na beira do mar. Acreditavam que ao passar eles perdiam a memória. Assim, os inescrupulosos negociantes de gente pensavam aliviar a sua culpa.
Mas a memória da gente não pode ser facilmente apagada. E entre mortos e desesperados, dos navios tumbeiros para as praias brasileiras vieram ritos e cores. Jeitos e sonhos que mudaram este outro lado do mundo, com uma saudade maior que a distância entre este assustador pedaço de mundo e a mãe África do qual foram separados. Dos que sobreviviam a estas viagens diabólicas, muitos morriam de tristeza. “Banzo” era o nome que se dava a esta morte de tanta saudade de casa.
Já os portugueses, que ganharam a fama pela palavra, vieram cantá-la em seus violões e cantos melancólicos. Sob a janela real ou imaginária da amada, ou debaixo das copas de enormes árvores reuniam-se para tocar e cantar. Também eles falavam em sua terra distante, e nos perigos do grande monstro marinho. Mas, com certeza, é bem mais fácil sentir saudade quando a gente não é escravo.
Saudade vai, saudade vem. Quero dizer...tempo vai, tempo vem, e começamos a cantar este nosso sentimento. A saudade praticamente tomou conta da música brasileira. De início meio escondida, porque gostava mesmo era do violão. E o violão, como vocês sabem, era discriminado e quase proibido. Quando ele desceu do morro e saiu das sombras foi um assombro só. Invadiu os salões, não teve vergonha nas ruas. Era melancolia e tristeza misturadas com a alegria de ter vivido aquilo que se cantava. Nunca mais a música foi a mesma.
Saudade que se bebe em longos goles para amaciar a garganta e soltar a voz. Saudade de criança, onde toda uma vida cabe num dia que nunca acaba. Saudade que levanta antes do sol pra preparar o café da solidão. Saudade queimada nas pontas dos dedos. Saudade de um certo gosto, de um cheiro especial que só se sente num certo lugar ou ao lado de uma certa pessoa querida.
Como é difícil dizer o que é a saudade, esse sentimento de que sempre está faltando alguma coisa. Essa estrada longa e envolta em bruma, que começa e termina não se sabe bem onde dentro de nós. Meu amigo, acostumado à vastidão dos campos e dos ventos que neles galopam soltos, diz que a saudade é uma cadeira vazia que range. Talvez sejam os sons dos fantasmas que nos povoam, que nela sentam e ficam rindo.
De tanto falar em saudade me veio a lembrança de uma gargalhada que anunciava a madrugada. E certos cabelos longos, que de tão belos podem ser adorados como objeto de devoção. Mas vamos parando por aqui. Que cada leitor ou leitora agora tome um tempinho, e abra sua caixa de saudades. E deixe que elas venham, e deixe que elas falem.

22 março 2010

Anko e Ruth - À sombra das nogueiras

Para digerir a felicidade natural, como a artificial, é preciso, antes de tudo, ter a coragem de engoli-la.

Baudelaire


Anko subiu centenas de degraus para chegar até o alto do burgo (die Festung) de Salzburg. Na Idade Média, Salzburg foi considerada um Estado próprio, com seus becos estreitos, suas casas coloridas, seus castelos, palácios episcopais e catacumbas. Por isso a cidade foi reconhecida como uma das mais belas do mundo.

A vista, desde o castelo, sempre lhe parecera magnífica. Os efeitos da luz fugidia do sol sobre a neve de múltiplos tons de branco lhe fazia muito bem. Na igreja, as oito janelas explodindo a luz sobre o altar. Tudo era poesia no olhar do menino.

A neve descendo as cordilheiras, o degelo iluminado pela luz da manhã, os primeiros pássaros anunciando a primavera. Era já o mês de maio, anunciado pelo doce encanto daquele dia de abril.

Ruth fora visitar o túmulo da avó. Porém, parou seu olhar na estátua de um anjo que segurava uma flor. Próxima ao peito a flor estática e o olhar jogado no horizonte. Foi naquele momento preciso que ela e Anko se viram pela primeira vez. Entre a catedral e o cemitério. Sob a imagem divina e o olhar angelical. Ele sai da catedral. Ela do cemitério. O que os une é a contemplação do transcendente. Trocaram sorrisos infantis e rápidas palavras de encantamento que iriam ligá-los para todo o sempre.

...

Anko caminha sob as copas das nogueiras, pisa em seus duros frutos, recolhe-os calmamente do chão. As árvores centenárias se envergam ante o poder do tempo. Sob elas Anko pode elevar seus pensamentos a píncaros jamais pensados por boa parte de seus companheiros de mosteiro. Se a eles é dada a obrigação de permanecer longe do século, Anko se propõe contemplá-lo e vivê-lo a seu modo. Admirador secreto de Epicuro, é neste filósofo que ele busca sua inspiração para venerar a existência.

Formula a seguinte interrogação a respeito de cada desejo; que me sucederá se se cumpre o que quer o meu desejo? Que me acontecerá se não se cumpre?”. Anko meditava sobre este preceito de Epicuro. E se o desejo que lhe inflamava o peito um dia se tornasse enfim realidade? O jovem monge por alguns instantes sentia um frêmito de medo que lhe movia a espinha e lhe fazia tremer as mãos.

Dos sete dons do Espírito Santo, a sabedoria lhe era mais cara. Naquele momento, seu pensamento era quase sacrílego. Queria o dom da onipresença por um breve instante. Apenas para vê-la.

Afastou aquela ideia tola. E num relance voltou a cabeça até o que sentia sob os pés. Eram nozes, muitas delas.

As nogueiras são árvores gigantescas que se derramam pelo vale, gigantes generosos e sem pressa. Crescem solitárias ou em grupos à beira dos canais. Algumas possuem copas de mais de 15 metros de diâmetro e outros tantos de altura. Sob a sombra o sussurro do farfalhar das folhas e o canto vibrante das cigarras. No chão, um tapete verde de ervas nativas onde as pessoas podem sentar-se.

Algumas são muito velhas, com teias complicadas de raízes, crateras abertas no tronco seco. Morrem e ressuscitam; encontram-se restos de troncos meio caídos, ainda presos à terra, de que já não se espera nada e que no entanto lançam galhos novos, com folhas de um verde claro quase transparente ao sol.

Por vezes uma fila de nogueiras esconde uma aldeia inteira. Desenham uma linha ao longo dos caminhos, como uma pálpebra fechada. Pode-se ir para debaixo delas como quem entra num jardim ou numa casa grande e fresca. As crianças brincam lá embaixo, correm à sombra, molham os pés na água dos canais.

Era época de colheita. De todos os lados vinham aos ouvidos de Anko os ruídos característicos dos homens tentando derrubar as nozes, com varas compridas e finas batendo nos ramos. Equilibravam-se nas árvores como na própria vida, avançando pelo tronco, com as varas na mão, e depois por galhos cada vez mais finos, até quase chegarem às pontas. Há muito de aventura naquele colher de nozes, pois naquele jogo de equilíbrio e peso muitos já haviam perdido a vida. Outros andavam puxando a perna ou um braço caído pelas constantes quebraduras.

No chão, grupos de homens ou mulheres apanham as nozes. Os apanhadores avançam em blocos compactos, com baldes, segundo um percurso cuja principal lógica é não estar onde elas caem. Cada um tem direito, no final, a uma boa porção de nozes. Os miseráveis, que não têm muito mais do que sacos vazios para carregar sua fome, não são esquecidos na colheita de nozes. Uma tradição antiga, na aldeia próxima ao mosteiro, era que cada grupo de catadores dava um punhado de nozes para as crianças pobres que vinham pedir. Também não havia cercas ou muros dividindo as plantações, para facilitar a passagem livre dos famintos que ali aplacavam sua fome imensa.

Se Anko assim quisesse, poderia até mesmo atravessar o vale apenas sob a sombra das nogueiras. Sempre amou-as como uma das mais belas representações da grandeza e beleza da Criação. Foi sob estas majestosas árvores e encantado por elas, que ele teve a ideia. Ao pensar sobre sua melhora de humor ao passar pelas nogueiras e em tudo que diz respeito à colheita das nozes, Anko resolveu inventar algo. (...)


Este "algo" é o licor de nozes. O mesmo licor que vai dar sequência à história e que vai acompanhar o mini-livro "Anko e Ruth - À sombra das nogueiras", a ser lançado no dia 28 de março em Nova Petrópolis. A editora é a Nova Harmonia, a mesma que lançou meu livro sobre o Nietzsche..

Pela Livraria Cultura só estará à venda o livrinho, mas quem o adquirir por aqui leva também uma garrafinha do licor (que é delicioso!).

É verdade que Nietzsche matou Deus?

É verdade que Nietzsche matou Deus?

Deus é o silêncio do universo, e o ser humano,
o grito que dá sentido a esse silêncio.
José Saramago

“Deus está morto”. Esta é uma frase famosa do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (diz-se “Níti”). Lendo-a assim, tirada do contexto em que foi pensada e escrita, ela parece – ao menos para as pessoas que creem – um tanto absurda. Mas esta afirmação vai muito além da simples frase feita. E dá muito o que pensar a crentes e ateus do mundo todo.
Dizer que Deus está morto é o mesmo que dizer que um certo mundo desapareceu. Nietzsche (1844-1900) viveu no século dezenove, que se dizia uma época cheia de descobertas e conhecimentos novos.
Para ele, havia um ar pesado em sua época. Todo aquele discurso que falava em progresso escondia em si algo putrefato e prestes a explodir. A morte de Deus é uma forma simbólica de dizer da morte do Ocidente, dos valores que construíram toda uma civilização. Nietzsche foi fundo nas suas críticas, afirmando que valores como a igualdade não passavam de grandes disfarces que escondiam a consciência de culpa dos mais fortes e o desejo de vingança dos oprimidos.
O cristianismo, para Nietzsche, havia corrompido boa parte da humanidade pregando um mundo ilusório fora daqui. Enquanto esperavam recompensa divina os homens se esqueciam de viver. E o que é ainda pior: maltratavam-se, se automutilavam, esqueciam que tinham um corpo. Tudo em nome de um outro mundo, um além ilusório criado pelas religiões e seus poderosos sacerdotes.
A tradição da filosofia até então sempre colocava Platão como um de seus maiores mestres. Muitos até diziam que depois da grandeza dele tudo parecia pequeno. Nietzsche nunca negou a importância do filósofo grego, mas passou toda a vida a atacar o seu pensamento.
A filosofia de Platão teria nos colocado num falso dilema, ao separar a realidade em dois: o mundo sensível e o mundo das ideias. Depois teria vindo o cristianismo, e se aproveitando disto teria dito que o mundo das ideias era o reino dos céus. Assim, os homens passaram a negar a vida e a maldizer o mundo em que viviam. Sentimentos tão humanos como o ódio, a vingança e o desejo, haviam sido reprimidos em nome de um mundo perfeito que não existia. Esses impulsos contidos voltavam em forma de doenças e ressentimento, envenenando os homens e suas relações.
A tradição filosófica sempre foi a da busca da verdade. Daí vem o próprio nome “filosofia” (philos+sophia), que no grego seria algo como amante ou amigo da sabedoria. O filósofo é aquele que sempre está em busca da verdade, da sabedoria, mesmo sabendo que nunca a possuirá plenamente. A verdade é a sua busca. Nietzsche foi ao fundo disto, radicalizou esta busca e colocou em dúvida a própria noção de verdade.
Ao investigar a origem do conceito do que chamamos verdade, encontrou a mentira. A verdade seria apenas uma criação humana como qualquer outra.
Vejam que não estamos falando de qualquer pensamento. Não é ao acaso que ele repetia que não queria seguidores ou discípulos. Ele dizia que filosofava a marteladas. Sua filosofia é extremamente provocativa, gerando reações que vão da adesão apaixonada ao desprezo. Há alguns estudiosos da filosofia que sequer admitem a ideia de que ele foi um filósofo, classificando-o como um escritor desvairado e inconsequente. Penso que são duas maneiras equivocadas de ler um pensador, ou negando totalmente o que ele pensou ou repetindo seu pensamento como se fosse algo divino.
Mesmo aqueles que nós costumamos chamar de “gênios” foram pessoas como nós, e foram educados e formados dentro de um determinado tempo. Ainda que tenham descoberto ou dito coisas extremamente avançadas para sua época, nunca podemos esquecer que eles são filhos dela. Nietzsche não foi diferente, e apesar de ser considerado por muita gente como uma espécie de “profeta” escreveu e pensou a partir do século dezenove (XIX) e contra ele.
Nietzsche estudou muito, e ainda jovem escreveu textos e livros que continuam impressionantes pela sua atualidade. Sua obra é grande, tanto pela quantidade quanto pela variedade e profundidade com que abordou os mais variados temas. Nos primeiros escritos ele segue uma certa organização acadêmica, que podemos encontrar até hoje na maior parte das produções em filosofia. Porém, posteriormente ele passou a escrever através de aforismos, fragmentos. Então, às vezes em um pequeno parágrafo encontramos uma condensação de informações e conceitos impressionante. Ele brincava com isto, dizendo que o efeito pretendido era parecido com um banho de água gelada: você entra rapidamente, toma uma ducha e sai renovado. É um susto que faz acordar!
Também por isto seus escritos são perigosos. Para usar uma imagem tirada dele, poderia dizer que quem sofre de vertigens não pode subir rapidamente até o pico de uma montanha. É necessário subir com cuidado, e lembrar que o ar gelado que faz lá no alto pede uma boa saúde. É preciso lê-lo sem pressa, digerindo cada palavra. Isto seria um bom conselho para qualquer leitura. Ler devagar. Mas em filosofia e ainda mais se tratando dele, nunca é demais lembrar.
A quem nunca leu nada de Nietzsche e quer conhecê-lo, eu sugiro um primeiro contato por via indireta. Há um pequeno livro, escrito pelo professor Oswaldo Giacoia Júnior, que é muito bom e extremamente elucidativo. O professor Giacoia é um dos maiores conhecedores de Nietzsche no Brasil. O livro chama-se Nietzsche, e eu o coloco ao final do texto.
Eu próprio estudei algumas coisas de sua obra, especialmente a sua relação com a educação, e publiquei o resultado em um livro chamado Nietzsche, o professor. Ele foi professor durante dez anos, escreveu sobre educação, e o tempo todo pensava em ser compreendido. Chegou a tirar do próprio bolso para publicar seus livros.
Nietzsche é famoso por suas frases de efeito, e muitas pessoas ficam paralisadas nelas. Mas é preciso ir muito além, se realmente queremos entender o pensamento de um filósofo. Mesmo assim, vou deixá-los aqui com uma citação famosíssima dele, que trata de um de seus conceitos mais importantes que é o do eterno retorno. Esta passagem se encontra no livro Gaia ciência, e me parece uma das mais belas exaltações à vida que aparecem na filosofia.

E se, um dia ou uma noite, um demônio viesse se introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: “Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai te ser necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, muito pelo contrário! A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão... esta aranha também voltará a aparecer, este luar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!” Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando este demônio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: “Tu és um deus, nunca ouvi palavras tão divinas!”
Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e talvez te aniquilasse, havias de te perguntar a propósito de tudo: “Quero isto? E quero outra vez? Uma vez? Sempre? Até o infinito?” E esta questão pesaria sobre ti como peso decisivo e terrível! Ou então, ah!, como será necessário que te ames a ti próprio e que ames a vida para nunca mais desejar outra coisa além dessa suprema confirmação!

A resposta de Nietzsche para a pergunta do “demônio” é um grande sim! Um grande sim à vida, com tudo que nela há de trágico e maravilhoso, belo e cruel...



Para pensar mais:

GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche, o professor. São Leopoldo: Nova Harmonia/Oikos: 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.