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25 março 2012

Apontamentos de um inimigo público

A escola onde trabalho está passando por uma grande reforma. Na semana passada, foi notícia na mídia por conta de uma denúncia anônima de que havia um fumódromo na planta da obra. Não sei quanto custaria, mas se trata de dinheiro público. Ninguém sabe como isto apareceu ali, nem quem teria solicitado uma aberração deste tipo. Por tabela, com a veiculação na rádio Gaúcha, os fumantes atuais perderam seu espaço (ilegal, claro). Ficaram fulos. Tomavam como justo seu privilégio. Eu sou apontado como o denunciante. Minto. No Brasil, quem denuncia é acusado. Então fui acusado de traidor da classe. O problema está em quem aponta o erro, e não na ilegalidade apontada. Só não estou sendo queimado porque já está fora de moda. Porém, houve até ritual de cremação. Não funcionou. Sigo vivo, forte e...pensante! Tornei-me o inimigo público número 1. Até aí tudo bem, quando você não deixa sua consciência ser anestesiada pelas conveniências. Difícil mesmo é ter que escutar coisas do tipo: “Uma coisa é a lei, outra é o bom senso”. O bom senso, neste caso, seria permitir que professores e professoras fumem dentro de uma escola. Em uma sala no meio do pátio onde circulam centenas de crianças e adolescentes em cada turno de aula. Este é o “bom senso” que contraria todos os movimentos mundiais pela redução de espaços para o fumo. A ONU, o governo brasileiro, estado, prefeitura, o guarda da esquina. E todas as leis também. Mas por que professores deveriam se ocupar disto, não é mesmo? Leis só servem para ser cumpridas pelos outros. Aí você fica naquela situação ridícula de discutir as “regras da escola”, onde não fumar é óbvio. E é claro que sempre há vários alunos para questionar: “Mas por que os professores podem e a gente não?”. Ah, meninada abusada. Se assistissem ao Big Brother, como boa parte de seus mestres, não teriam tempo para estas pequenas subversões. O infantilismo em educação é tão forte que o próprio objeto não é discutido. “O dedo mostra a lua e o tolo olha o dedo”. Fica-se nas digressões sobre o que teria motivado o denunciante. Vingança? Ódio contra os fumantes? Seria ele um sujeito normal? Na Internet comentários de um cristianismo piegas pregam o “perdão” ao ser que errou. A ética de Brasília se justifica. Estamos todos enredados na rede do compradismo e do jeitinho. Se você aponta um crime, jamais pode ser pelo simples fato de buscar a justiça. Certamente deve ter um problema pessoal, uma raiva camuflada, um recalque. Se for mulher é bem pior, porque isto significa que lhe falta um homem, um pênis, um filho. É equivocado usar as prerrogativas de cidadão, que se incomoda com ilícitos e os denuncia. Por que afinal a escola deveria se ocupar com estes temas antiquados como a cidadania, não é mesmo? Só vale falar mal do que está longe, genericamente, de uma forma que não mexa com a realidade. A regra básica é a democracia de fachada, onde se fica horas discutindo um assunto até chegar à conclusão alguma e – invariavelmente – a um pacto de mediocridade fundado na falsa harmonia. Enquanto escuto tolices, minhas perguntas continuam. Quem fiscaliza uma obra pública? Como um fumódromo aparece em uma planta de uma reforma e ninguém vê? Neste caso específico o tal fumódromo já não está em lugar nenhum, as autoridades preparam uma sindicância para perguntar se fumavam na “cozinha” dos professores ou na cozinha do refeitório (muito crucial a questão). E, elementar meus caros amigas e amigos leitores, o culpado é o mordomo que vos fala. A educação no Brasil vai mal. Culpa dos governos? Também.

17 março 2012

Cães e homens





Pesquisas recentes têm demonstrado a crescente disposição de boa parcela da população (especialmente na chamada classe “média”) em preferir a companhia dos cães, em detrimento aos de sua própria espécie: os humanos.
Mas não se animem os leitores da filosofia pessimista de Schopenhauer, imaginando que sua fórmula ranzinza popularmente conhecida como “quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães” tenha, enfim, triunfado. Que nada!
As pessoas cada vez mais gostam dos cães simplesmente porque cada vez menos conhecem seus semelhantes (o Outro, este estranho).
Os humanos, bípedes, racionais, passageiros do século XXI, são a antítese de homens profundos como Schopenhauer. Não se sabem nem querem saber, e ainda por cima têm raiva de quem sabe.
Com os avanços da biotecnologia e o empobrecimento da linguagem, em breve poderemos ver cachorros de óculos perguntando “por quê?” e humanos, pela rua, latindo e carimbando os postes.

Por algum tempo, talvez, o mundo torne-se mais engraçado.

“...pois, francamente, como se restabelecer da infinita dissimulação, falsidade e malícia dos homens, se não houvesse os cães, em cuja face honesta podemos mirar sem desconfiança? Nosso mundo civilizado não passa de uma imensa mascarada. Ali encontramos cavaleiros, padres, soldados, doutores, advogados, sacerdotes, filósofos, e o que não mais! Porém estes não são o que representam: são simples máscaras, sob as quais, via de regra, se situam especuladores financeiros.”
Arthur Schopenhauer (1788/1860)

[Este é um textinho que escrevi há alguns anos...me parece mais engraçado do que interessante...de qualquer forma, vai estar no livrinho de crônicas]

14 março 2012

Um dia de chuva

Ela pousou o olhar sobre a foto do avô e da avó, como os conheceu: velhinhos, meigos.
Olhando os olhos da avó não pôde conter o choro.
- Que saudade vó! – disse de si para si.
E, de repente, a saudade triste e melancólica deu lugar à alegria. Um som suave vindo da rua fez-lhe virar a cabeça.
A calçada estava transformada em um tapete de mil cores e do céu caía uma chuva colorida de pétalas.

08 março 2012

Três pedidos e um sonho

Nos primeiros dias do ano tudo se anima. E a infância volta a ser, por uns breves dias, a questão central da escola. Todos numa atmosfera de doce curiosidade. Professores lembram que foram alunos e alunas sonham em ser professoras.
Neste encanto todo, um trabalho. Para que se conheçam. Para que a magia encantadora da comunicação humana os envolva e toque. Propõe-se que eles sonhem e que escrevam o seu sonho.
- Eu faço uma pergunta para vocês - diz a professora. E se encontrassem uma lâmpada e dela saísse um Gênio? Quais são os três pedidos que vocês fariam?
Um menino de olhos enormes e cabelos rudes levanta a mão. E dispara:
- Eu ia pedir um caderno, um lápis e uma borracha!




[Pequeno fragmento do livro sobre a Caixinha de Perguntas]

05 março 2012

A filosofia e o caminho das antas

Meus alunos perguntam onde nasci. Aproveito a deixa.
Nasci em Poço das Antas. A inevitável pergunta: quem nasce lá, o que é? Sempre tem um engraçadinho pra caçoar lá no fundo da sala. Eu também acho graça.

Segundo o que me disse um livro, as antas são mamíferos enormes e pesados.
Criam um caminho no meio da mata que atravesse sua comida e chegue até alguma fonte de água. Seguem sempre aquele mesmo caminho estreito.
O caminho das antas é seguro. Todos os dias elas retornam por ele até a comida e a água de novo.
As onças vasculam muitos caminhos. E gostam de comer antas. As onças não são vegetarianas.
O caminho das antas até pode ser seguro, mas no momento em que uma onça o encontra não há mais nenhuma saída. A onça sabe que basta apenas deitar na moita e ficar esperando.
Antas são previsíveis. Se imaginam geniais nas certezas que construíram trilhando sempre o mesmo caminho.
(Ah, leitor, deixa de ser chato! É claro que eu sei que anta "não se imagina genial coisa nenhuma". É só um jeito de dizer, de inventar uma imagem pra dizer uma coisa...tá entendendo?)
Já posso até imaginar uma velha anta dizendo: "Isto eu sei muito bem, já faço isso há trinta anos!".
As antas apenas repetem os mesmos comportamentos, o mesmo padrão. Por isso se tornam a comida predileta das onças. As antas pensam que tem muita experiência, mas o que elas têm é muitos anos de repetição.
É só aguardar, sabem muito bem as onças. Você anda por todos os lados, fareja bem, vasculha...e aí está o caminho da anta.
É um pulo só. Vapt vupt! E está pronta a refeição. Calorias para muitos dias. Humm...delícia!

Brinco com os alunos desenhando um caminho de anta no quadro. E a aguinha la embaixo, que é onde o caminho sempre dá.
Um caminho é fácil de decorar e talvez até passe uma grande sensação de segurança. Mas a onça atravessa os caminhos - a onça que vem travestida de mil mantos e faces.
Na vida possivelmente existam bilhões de possibilidades de caminhos, tantas quantas esses bilhões de pessoas que somos poderiam imaginar.
Então por que se contentar apenas com aquele caminho das antas?
Há muitos outros caminhos por se descobrir e inventar.

Não cabe à Filosofia mostrar caminho nenhum a ninguém. Isto quem fazem são os pastores de almas e os políticos. "Tudo gente fina, meu advogado jura", como disse o Raul Seixas.
Mas ela nos ajuda a inventar outras rotas, outros atalhos que subvertam a dureza do asfalto e a retidão das linhas que dividem as vias da vida.

A filosofia constrói e destrói conceitos. Mostra um mundo onde só havia um muro.
Dizem que é prima-irmã da poesia, mãe da ciência (que às vezes é filha pródiga), despertadora de rebeldias para muito além da adolescência.

Filosofar não é luxo. É necessidade. E nem precisamos de diploma pra isso.

01 março 2012

Pássaros


(Mais um textinho daquele livro que demora pra vir ao mundo...)


Eles já estavam lá, quando uma coagulação imensa de seres forjou esse fenômeno que chamamos o humano. Sobre nossas cabeças migravam de costa a costa, obrigando-nos a revirar o olhar em busca de caminhos no céu. Eram enviados dos deuses esses seres alados e mágicos que podiam voar.
Num eterno retorno recomeçavam a cada estação o que nunca acaba: a busca pela vida, a bela e terrível necessidade do impulso vital em perpetuar-se.
Trinta e tantos anos. Um fio claro, quase branco, na sobrancelha direita. Que sinal é este? Que simbologia escondida sob um cabelo descoberto?
Quase quarenta anos de dúvidas e descaminhos. Passos firmes sobre trilhas no meio do mato. Atalhos pedregosos que fui buscar para encurtar caminhos, mas que por vezes cansaram minhas pernas.
Já não são de dezesseis minhas caminhadas, mas a velocidade mantém-se a mesma. Passo apressado por estas ruas, estes transeuntes e prédios antigos que insistem em seduzir meu olhar. São outros tempos que dormem naquelas fachadas. Olhares fantasmas grudados na tinta antiga, castigada pela poeira dos dias.
O mundo que vejo aos trinta e muitos é diferente. No entanto, estou limpo, apesar do que me diziam há dezesseis tempos atrás. Tenho mais de duas vezes dezesseis agora. Duplamente apaixonado pela vida. Dividido, saborosamente dividido. Metade de mim são os sonhos que insisto em conceber. A outra metade é louca, porque teima em querer acordar-me.
Certa vez, escrevi que a verdade é o que resta quando a poeira baixa. Estava certo.
Depois, a experiência me ensinou a passar a vassoura.