Total de visualizações de página

26 setembro 2013

Um par de sapatos

 
Já falei aqui que passeio todos os dias com a Míti.
Falo com toda pessoa que dirige a mim a palavra ou o gesto, sem preferências. Aprendo mais nestes encontros casuais do que aprenderia se assistisse televisão.
Hoje se aproximou um rapaz desde logo pedindo desculpas por existir.
Disse que não iria pedir dinheiro, nem estava ali pra "chinelear" ninguém. Porque chinelear não adianta de nada. O cara se queima, se suja, vai parar na cadeia e coisas assim.
Só queria um par de sapatos.
"Sim, porque este aqui já tá todo aberto". Ele tirou o tênis e mostrou a meia que acabara de ganhar de um vizinho da redondeza. Os pés deformados por alguma enfermidade. E um casaco, "que é pequeno, pro meu filho...mas tá legal assim mesmo".
É portador do vírus HIV, que por vezes ele chama de AIDS (o nome que imitamos dos americanos).
Falou em posto de saúde, no cantinho onde dormiu nos últimos dias com o filho. Disse de uma procura por emprego, da identidade perdida que não deixa entrar no albergue. Porém nesta parte da conversa seus olhos fugiram de mim.
Mas gostei sobretudo da sua sinceridade.
Sou este que está na tua frente, sou assim mesmo e não faço de conta. Quero apenas um sapato. Assim me pareceu a sua apresentação.
Pois subi até os confortos do meu sétimo andar.
E até eu, a pessoa mais simples que você conhece, tem um par de sapatos que nunca usa e que está ali ocupando espaço e deixando de aquecer os pés de alguém.
Então vou ao guarda-roupas. Dois minutos rápidos enchem uma sacola com blusão, moletom, calça etc.
Surgem até roupas para sua mulher, que já estavam separadas ali ao lado.
No caminho de volta um par de tênis doado pela zeladora.
Ele diz seu nome e pergunta o meu. Aperta minha mão com vontade e agradece. Tratamo-nos como iguais que sabemos que não somos, e nos despedimos com um "até logo" que nenhum dos dois proferiu.

Nas minhas pequenas utopias não há pessoas morando nas ruas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem-vindo. Mas não deixe-o sem assinatura.