Total de visualizações de página

21 agosto 2012

Raul Seixas entre o rock e a filosofia


Raul Seixas entre o rock e a filosofia

A música é apenas um veículo, eu estou com o microfone na mão...isso é uma coisa importante, é uma arma tão poderosa quanto a bomba atômica!
Raul Seixas

À noite, sozinho no flat, Raul prepara sua janta e assovia “À beira do Pantanal”. Escreve sobre aquele momento, diz que no outro dia estará rindo disso tudo. Na manhã seguinte a empregada encontra-o morto. Era 21 de agosto de 1989. Essa é a versão lendária. Na verdade ele chegou completamente bêbado, arrastando-se. Dormiu e não mais acordou.
(Foto: papo com o Sylvio Passos, no último domingo em Porto Alegre)


Na tarde do dia seguinte saio de meu local de trabalho e atravesso a rua. Meu amigo camelô se dirige a mim num tom um tanto decepcionado: “Morreu o nosso homem!”. Mas quem seria esse “homem” dos camelôs, estudantes e empregadas domésticas? Ninguém menos que o grande Raul Seixas.
Irresponsável, anarquista, cáustico, místico, irônico... Os adjetivos são muitos e as opiniões sobre ele também. O certo é que Raul foi um artista inconformado com seu tempo, e esta talvez seja a grande marca de sua obra.
Leitor voraz de literatura e filosofia, foi desta última disciplina que teve aulas particulares. Também gostava de psicanálise, tanto que em seus primeiros shows lia trechos inteiros de Freud.
Gravou 20 discos solo, escreveu um livro e um gibi intitulado “A fundação de Krig-ha”, que teve sua tiragem de 5.000 exemplares destruída pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Como tantos outros artistas brasileiros, Raul Seixas foi muito perseguido e censurado. Até o fim de sua vida várias músicas permaneciam censuradas, como a famosa “Mamãe eu não queria” (um verdadeiro libelo contra o serviço militar obrigatório). Ele pergunta: “Mamãe, o exército é o único emprego pra quem não tem nenhuma vocação?”.
Para Raul, o chamado rock and roll havia morrido em 1959. E aquele que era feito no Brasil, com raras exceções, era uma imitação do americano que ele considerava ruim. Ele também não via futuro nos novos movimentos, como o punk. Seriam apenas modas, nada que pudesse atingir seriamente “os alicerces do Sistema”. Em sua visão, a única coisa que resistia aos modismos era “a verdade, o coração, aqueles escolhidos que não são afetados pela passagem do tempo”.
Talvez ele mesmo tenha se tornado um destes “escolhidos”, um clássico. Pois como podemos explicar o fato de que um cantor que já morreu há 20 anos continue vendendo milhares de CD's diariamente? Sem nenhum esquema de mídia ou divulgação, Raul Seixas segue sendo um fenômeno de vendas. Seu público não tem perfil definido. Pode ser um pré-adolescente pobre ou um senhor de classe média alta. Há inclusive uma música do Zeca Baleiro que brinca com isto. Há um bordão, uma frase que é escutada em apresentações musicais em todo o Brasil, independentemente do estilo: “Toca Raul!”. Zeca fala que isso deixava-o irritado, mas depois resolveu render-se e compor uma canção falando desse “poderoso” Raulzito que parece ter uma seita de seguidores.
Embora fosse criador de um tipo, o “maluco beleza”, Raul nunca conseguiu equilibrar muito bem a maluquez e a lucidez. O dionisíaco e o apolíneo. Foi o álcool que o matou. A mais consumida das drogas, seu veneno predileto. Por outro lado, talvez fosse lúcido demais para suportar a droga em que o mundo estava transformado.
Quando era perguntado se gostava de dar murro em ponta de faca, dizia que sim. Era um artista popular, com muitos sucessos comerciais, mas nunca rendeu-se ao esquemão das gravadoras. “Se não fizesse isso, não dormiria à noite...”, afirmava.
Em Porto Alegre, dois meses antes de sua morte, disse que não acreditava mais que a juventude pudesse fazer uma mudança radical na sociedade. Falando pouco e pausadamente, emocionou as pessoas que foram assistí-lo e que sabiam serem a última vez que o estavam vendo. A primeira e última, como era meu caso. “Agora é com vocês”, disse ele, e virou os microfones para o público. Era uma despedida respeitosa.
Na China os estudantes protestavam. A imagem do revoltado em frente ao tanque passeou indiscriminadamente pelo planeta. Engraçado foi que o chamado “Ocidente” utilizou a fotografia para vender a sua proclamada liberdade, fingindo que sua história também não foi toda construída sobre o autoritarismo. Raul lembrou esse fato no show, dizendo que durante a ditadura no Brasil os jovens eram reprimidos da mesma forma: “Não podíamos conversar, ficar juntos, éramos logo reprimidos...como na China agora”.

Compará-lo com os ícones da MPB, como Chico ou Elis, não seria uma boa recomendação. Estamos falando de tribos diferentes, embora uns e outros se escutavam e se respeitavam. Quando Elis Regina morre, ele lhe escreve um belo poema. E é para ela que teria sido enviada “Areia da ampulheta”, que ela não quis ou não teve tempo de gravar. Raul mergulhou em tudo, ardeu em todo fogo que se meteu. Não pretendia a maturidade e precisão que outros procuraram e criaram tão bem. Sua obra pode ser chamada sem medo de brasileira. Está tudo ali. O cancioneiro popular com suas dores de amor, a colonização através do rock e a antropofagia do ritmo dos outros: baiões, flautas, pandeiros e violas envolvendo o canto de protesto estrangeiro. Jackson do Pandeiro misturado com Chuck Berry.
Das viagens de trem com o pai, pelo interior baiano, a sonoridade de Luis Gonzaga. A mãe em casa escutando discos de tango, Piazolla ocupando com prazer a sala da casa nas manhãs de domingo. Os vizinhos americanos apresentando discos recém lançados de um novo som, que representava bem mais do que somente música. Esta mistura toda está em Raulzito. Este talvez seja o grande segredo que o torna uma figura estranha e original na história da música brasileira. “Sou o que sou, sem mentiras pra mim...” é o que ele diria.
Foi ouvindo as canções de Raul Seixas e lendo suas entrevistas, que tive os primeiros contatos com nomes como Sartre, Nietzsche e Schopenhauer.
Com ele entrei em contato com a Filosofia. E é com ele que encerro este livro. Este caminho que percorremos juntos e que nos faz desde agora cúmplices.


[Texto inédito para o livro "As cartas místicas", ainda não publicado]

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem-vindo. Mas não deixe-o sem assinatura.