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23 novembro 2011

O amigo se declara

E ele disse: "então vamos brincar de MSN".
É simples. Seguimos assim deitados no chão do quarto. Você me dá o seu braço que eu lhe dou o meu. A cada mensagem digitamos um no outro.
Aquela brincadeira prometia animar a tarde. Os dois confidentes. Ela, 12 ("mas quase 13").Ele 14. Os melhores amigos.
A conexão parece que está lenta. Por que você demora a digitar?
É que havia algo importante a ser dito.
Com o braço estendido sobre ele e o olhar perdido na pequena janela, ela ouviu o que jamais pensaria ouvir.
Ele declarou-se.
Logo ele. O confidente, o amigo, o íntimo. Aquele que dela tudo sabe, o senhor das chaves do baú dos segredos da adolescência.
E agora, o que fazer?
Ela digitou uma despedida rápida e rápido evadiu-se daquele MSN de surpresas.
Foi para casa. E pensou pensou pensou. E nem dormiu nem nada. Tem dias em que a vida nos prega peças.

Na manhã seguinte procurou o professor de Filosofia. Por algum motivo ou mistério ele parece possuir as respostas. Mas ele não tem resposta nenhuma. Ele só tem novas perguntas e a sua amizade, o que não é nada mal.
E com suas novas dúvidas ela foi vencendo a manhã, avançando lentamente naquele espaço de tempo quase infinito entre o recreio e a hora de ir embora.
Resolveu dar um tempo para si. Muito tempo para pensar. Talvez isto dure quase a vida toda, quase até depois de amanhã.
É preciso força, é preciso coragem. É preciso muito coração pra conseguir não magoar o amigo. Pois é o amigo dele que ela ama.
Mas talvez nem tanto. Mas talvez quem sabe. Mas quem sabe talvez.
Novas coisinhas agora palpitam. Outros temores e tremores.
O que acontecerá agora?
Quem sabe o deus Acaso se manifeste. Esperemos então.
Se um novo amor daí surgir ou se uma íntima amizade findar, prometo que lhes manterei informados.


A propósito: o professor também não saberia o que fazer.

07 novembro 2011

A nova moral do funk

Gênero modificou a natureza clandestina da pornografia

Marcia Tiburi

A afirmação adorniana de que após Auschwitz toda cultura é lixo não perde sua atualidade. Se, de um lado, a frase implica que a cultura não vale mais nada, de outro quer dizer que “lixo” é a melhor categoria explicativa da cultura como “aquilo que se rejeita”.

Mas vem significar também que cultura é a experiência do que sobra para os indivíduos levando em conta as condições socioeconômicas e políticas marcadas pela divisão de classes, de trabalho, de sexos, da própria educação dirigida de maneira diferente a pobres e ricos.

A partir da elevação do lixo à categoria de análise, podemos com tranquilidade ecológica (aquela que faz a separação dos descartáveis por categorias) partir para uma brevíssima investigação daquilo que se há de nomear como “moralina funk”, a performance corporal-sonora que se apresenta como o ópio do povo de nosso tempo.

Muito já se escreveu sobre o fenômeno que merece atenção filosófica urgente desde que se tornou a “cultura” que resta para uma grande camada da população de classes menos favorecidas econômica e politicamente.

Muitos afirmam que “o funk carioca também é cultura”, mas pouco comentam sobre seu sentido como capital cultural justamente porque seu único capital implica uma contradição: pobreza material e espiritual. Ou seja, capital nenhum.

Na ausência desse capital sobressai o que resta aos marginalizados. Eles descobriram o valor daquilo mesmo que lhes resta. Eis o capital sexual.

A performance da moralina funk depende desse capital sexual. Explorado, ele é a única mercadoria da consciência e do corpo coisificado. Seu paradoxo é parecer libertário quando, na verdade, é a nova moral.

Pornografia moralizante

Produto dos mais interessantes da sempre moralizante indústria cultural da pornografia, a esperteza do funk carioca é transformar em regra aquilo que foi, de modo irretocável, chamado por seus adeptos pela categoria do “proibidão”. A versão da coisa que não é para todo mundo.

A fórmula do funk é tão imbatível quanto a lei do estupro das histórias do Marquês de Sade. É o barulho como poder, ou melhor, violência. Nenhum ouvido escapa da moralina funk na forma de disfarçadas ladainhas em que as mesmas velhas “verdades” sexistas se expoem, como não poderia deixar de ser, pornograficamente.

A economia do proibidão

Mandamento sagrado da performance é que ninguém ouse imputar marasmo ao tão cultuado quanto profanado Deus Sexo.

Não existe uso da pornografia autorizado, pois a regra de sua moral é a clandestinidade. Daí a função do proibidão na economia política do funk. A história da pornografia oscila entre ser o outro lado da lei e ser apenas outra lei.

Foi isso que fez seu sucesso político em sociedades autoritárias contra o princípio publicitário que lhe deu origem. É o que está dado em sua letra: porno (prostituta) e grafia (escrita) definem, na origem, a mulher que pode ser vendida. E que, para ser vendida, precisa ser exposta.

A pornografia é, assim, uma espécie de exposição gráfica da mercadoria humana. Não é errado dizer que a lógica que transforma tudo em mercadoria tem seu cerne na “prostitutabilidade” de todas as coisas. Nada mais simples de entender em um mundo de pessoas confundidas com coisas.

Que a pornografia esteja ao alcance dos olhos, dos ouvidos, de todos os sentidos, exposta em todos os lugares, significa apenas que a regra do ocultamento foi transgredida. Mas implica também sua efetivação como publicidade universal. Isso explica por que ela não choca mais.

Na performance do funk carioca ela é altamente aceita em escala social. Seja pela pulsão, seja pela acomodação, se o imoral torna-se suportável é porque ele tomou o lugar da moral. É a nova moral.

A pornografia de nossos dias é tão bárbara quanto a romana pornocracia, com a diferença de que não temos mais nada que se possa chamar de política em um mundo comandado por regras meramente econômicas.

Daí que todo funkeiro ou seu empresário saibam que seu negócio é bom pra todo mundo.


Texto publicado na revista Cult, disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/11/moral-funk/

06 novembro 2011

Itamar Assumpção

São três horas da manhã já do outro dia
Eu pensando no futuro enquanto você dormia
Se eu morresse amanhã qual que será qual que seria
Da minha mãe meus irmãos
Minha mulher, minhas filhas
Minhas músicas, minhas lindas orquídeas
Sono que é bom eu não tinha
Mas tinha bastante dúvidas
Espinhos grilos conflitos confrontos e suicidas
Porque será que da morte
Não há caminho que torne?
Enquanto eu pensava nisso ocorreu-me o seguinte
Que eu poderia viver oitocentos milhões de anos
Neste planeta na gandaia e na folia
Louco de tanta alegria
Totalmente à revelia

Itamar Assumpção




Se alguém souber onde está passando o documentário "Daquele instante em diante", sobre o grande Itamar Assumpção, por favor me avise.

03 novembro 2011

Esta é a nossa Porto Alegre

Os buracos da minha rua estão de aniversário. Até os dentinhos já nasceram. São sagitarianos, eu acho. Meio humanos meio bicho pronto a engolir o seu carro.


Ao lado do prédio onde moro tem uma praça. É uma praça muito engraçada. Não tem brinquedo, não tem banco, não tem nada.
Mentira, tem um banco caindo aos pedaços. E um resquício de brinquedo, que mais parece uma daquelas instalações de arte contemporânea que o sujeito fica falando 30 minutos o que significa e você sai de lá sem entender coisa nenhuma. Tipo um barbante pendurado no meio de uma sala vazia - o artista jura estar transgredindo alguma coisa.

A nossa pracinha é bem divertida. Os carrapatos se divertem. Os ratos se divertem. As baratas ficam curtindo a vida livre dos lixos esparramados. É tudo alegria, sem repressões. Cachorros com donos ou sem lenço nem documento fazem lá suas necessidades, "passam fax" como diziam minhas colegas de trabalho. Agora eles não passam mais fax, porque já saiu de moda ou de linha. Agora os cachorros fazem o número dois. É. Assim mesmo, em público e sem pudor nem medo de olhares indiscretos.

Esta é a nossa Porto Alegre. A nossa província preferida. Mui leal e valorosa.
São tantas emoções...


Elenilton Neukamp