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30 agosto 2011

Nós e os animais

"Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida. O ser inteiro do animal se lança nessa luta, sem nenhuma reserva. Quando o senhor diz que falta a essa luta uma dimensão de horror intelectual ou imaginativo, eu concordo. Não faz parte do modo de ser do animal experimentar horrores intelectuais: todo o seu ser está na carne viva.
Se não o convenci foi porque faltaram às minhas palavras, nesta ocasião, o poder de despertar no senhor a inteireza, a natureza não abstrata e não intelectual do ser animal. É por isso que o incito a ler os poetas que devolvem à linguagem o ser vivo, palpitante; e se os poetas não o comovem, sugiro que caminhe lado a lado com o animal que está sendo empurrado pela rampa na direção do seu carrasco.
O senhor diz que a morte não importa para um animal porque o animal não entende a morte. Isso me lembra um dos filósofos acadêmicos que li para preparar minha palestra de ontem. Foi uma experiência deprimente...Se isso é o melhor que a filosofia humana pode oferecer, eu disse a mim mesma, eu preferia ir viver entre cavalos."

J.M. Coetzee
em "A vida dos animais", Companhia das Letras (2003)

27 agosto 2011

A história de Severina

Recebi por e-mail esta reportagem, com a história e o depoimento desta mulher. Dispensa comentários.




'Minha mãe me levou pra ele', conta mulher abusada pelo pai em PE

FÁBIO GUIBU
DE RECIFE

A agricultora Severina Maria da Silva, 44, foi absolvida pela Justiça de Pernambuco anteontem (25).

Ela era acusada de ter encomendado a morte do pai, Severino Pedro de Andrade, de quem engravidou 12 vezes e teve cinco filhos durante os 29 anos em que foi vítima de abusos sexuais por parte dele.

O júri popular acatou a tese da defesa, de "inexigibilidade de conduta diversa", ou seja, de que a ré não poderia ser condenada porque foi coagida desde a infância e agiu sem ter outra opção.

Severina, que vive na zona rural de Caruaru (136 km de Recife), começou a ser estuprada aos nove anos de idade e, em 2005, contratou dois homens para matar o pai, ao perceber que ele assediava uma de suas filhas-netas.

No julgamento, até a Promotoria pediu a absolvição da acusada. Os dois assassinos, Edilson Francisco de Amorim e Denisar dos Santos, foram presos, julgados e condenados. Eles cumprem pena em Caruaru.

VEJA O DEPOIMENTO DE SEVERINA:

*

Eu nunca estudei, nunca tive amiga, nunca arrumei um namorado na vida, nunca saí para ir a uma festa. Até os 38 anos, vivi assim, e foi assim até quando me desliguei do meu pai, no dia em que ele foi morto.

Meu pai não deixava eu e minhas irmãs fazermos nada. Toda a minha vida eu sofri. Comecei a trabalhar na roça ainda menina, com seis anos, arrancando mato.

Aos nove, fui com meu pai para o roçado. No caminho, ele me levou para o mato, amarrou minha boca com a camisa, me jogou de cabeça e tentou ser dono de mim. Eu dei uma pezada no nariz dele, e ele puxou uma faca para me sangrar.

A faca pegou no meu pescoço e no joelho. Depois, ele tentou de novo, mas não conseguiu ser dono de mim.

Em casa, contei para minha mãe e ela me deu uma pisa. Fiquei sem almoço.

À noite, minha mãe foi me buscar e me levou para ele. Me botou de joelhos na cama, tampou minha boca com o lençol e pegou nas minhas pernas para ele pular em cima. Eu dei um grito e depois não vi mais nada.

No outro dia, fui andar e não pude. Falei: "Mãe, isso é um pecado, é horrível". E ela: "Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai."

A partir daquele dia, três dias por semana, ele ia abusando de mim. Com 14 anos, eu engravidei. Tive o filho, e ele morreu. Eu tive 12 filhos com meu pai. Sete morreram. Seis foram feitos na cama da minha mãe. Dormíamos eu, pai e mãe na mesma cama.

Um dia, uma irmã minha disse que estava interessada em um namorado. O pai quis pegar ela, disse que já tinha um touro em casa, e que não era para ninguém andar atrás de macho lá fora.

Eu mandei minha mãe correr com minha irmã, e ele correu com a faca atrás. Depois disso, minha mãe não ficou mais com ele. Foram todos embora para Caruaru, para a casa do meu avô. Ela e as minhas oito irmãs.

Só ficamos eu e meu pai na casa. Eu tinha 21 anos, e ele sempre batia em mim. Tentei me matar várias vezes, botei até corda no pescoço.

Os filhos nasciam e morriam. Os que vingavam foram se criando. Minha filha estava com 11 anos quando ele quis ser dono dela. Falou assim: "Nenê está engrossando perninha? Tá saindo peitinho, enchendo a melancia? Tá bom de experimentar, que é para ir se acostumando." E tacou a mão nela.

Eu falei: "Seu cabra da peste, está escrito na minha testa que eu sou Maria-besta? Eu sou filha de Maria, mas besta eu não sou." E ele: "Rapariga safada, Maria era mulher para todo acordo. E tu, não tem acordo?"

Nessa hora, eu disse para ele: "Se você ameaçar a minha filha, você morre. Minha mãe aceitou, mas eu não." Meu pai me bateu três dias seguidos, deu um murro no meu olho que ficou roxo.

Na segunda, ele amolou uma faca e foi vender fubá [farinha de milho]. Antes, disse: "Rapariga safada, quando chegar, se você não fizer o acordo, vai ver o começo e não o fim."

Eu respondi: "Ô pai tarado da peste, se você ameaçar a minha filha, você morre." Ele foi para a feira e eu, para a casa da minha tia. Lá, mostrei meu corpo lapeado, o olho roxo, o ouvido estourado.

Meu pai tinha amolado uma faca de 12 polegadas na segunda-feira à noite e me mataria na terça se eu não fizesse o acordo. Foi quando paguei para matarem ele.

Peguei um dinheiro que tinha guardado, fui para Caruaru e, na casa do Edilson, paguei R$ 800 na hora.

Quando o pai chegou, o Edilson veio acompanhando. Foi quando acabou a vida dele. O rapaz arrumou um amigo e fez o homicídio. A faca que ele havia comprado, interessado na minha vida, ele morreu com ela.

A minha filha, a filha dele, eu salvei. Quem é pai, quem é mãe, dói no coração. Levar a sua filha para a cama, abrir os quartos dela, como a minha mãe fez, e o pai ir para cima da filha? Eu, como passei por isso, jamais iria aceitar.

Antes disso, eu ainda procurei os meus direitos, mas perdi. Há uns 15 anos, fui na delegacia, mas ouvi o delegado falar para eu ir embora e morar com o velhinho (o pai), que era uma boa pessoa.

O homicídio foi no dia 15 de novembro de 2005. No cemitério, já tinha um carro de polícia me esperando. Na cadeia, passei um ano e seis dias. Fiquei no castigo, depois fui para uma cela.

Depois do julgamento, fiquei feliz. Antes, pensava na liberdade e na cadeia ao mesmo tempo. Agora, quero viver e ficar com meus filhos. Quero que minha história sirva de exemplo, para que os pais e as mães procurem respeitar os seus filhos, ser amigos deles. A gente é pobre, mas pobreza não é desonra. Desonra é o cara fazer do próprio filho um urubu.

A partir de hoje eu quero é viver, porque tenho muita coisa para aproveitar pela frente. Tenho a liberdade e os meus filhos comigo.





20 agosto 2011

Temos guardado um silêncio...

Um dos primeiros livros que comprei com meu próprio dinheiro, quando tinha meus 14 ou 15 anos, foi "As veias abertas da América Latina" do Eduardo Galeano. Como vocês podem ver, já comecei tocando direto na ferida.
Ele continua sendo um dos grandes livros necessários para entender nosso continente. Assim como o impressionante "Cem anos de solidão" do García Marquez (que acabei de reler há alguns dias).
Mas não venho falar de livros, porque senão não paro...
Lembrei do "veias abertas" porque há uma epígrafe nele que nunca mais saiu de minha memória, desde aqueles dias em que o li. E ela volta de tempos em tempos, para me incomodar com a sua insistência em não perder a atualidade:

"...TEMOS GUARDADO UM SILÊNCIO BASTANTE PARECIDO COM A ESTUPIDEZ..."

18 agosto 2011

Receita de paciência

Uma papinha reforçada pro bebê (acabo de fazer):

Inhame
Aipo
Alho-poró/alho comum (pouco)
Moranga cabutia
Salsa graúda (muito)
Cebolinha (pouquinho)
Cenoura (pouquinha)

Tudo orgânico.

Uma boa panela e fogo brando.

Preparo:
Juntar tudo e ir mexendo, com colher de pau.

Enquanto eu cozinho e o fogo arde, vou tentando digerir, ruminar, aplacar a dor.
Só nunca dói existir pra quem desistiu.
Na alquimia das panelas tentando encontrar a "ardente paciência" que anunciou um dia o poeta Rimbaud, diante das cidades fabulosas que ele teve a sorte de não conhecer.
E na alegria de fazer a comida do meu filho vou inventando sentidos pra insistir no meio desta indiferença e neste tempo tosco que me coube viver.


Outro dia sonhei um sonho alucinante, cinematográfico. Paisagens, viagens, gentes e cliques fotográficos. Acordei fascinado e contente, disposto a sair contando para todos minha experiência. Não consegui.
O sol levantou e ardeu todo o dia, mas todos estavam dormindo.


Na outra manhã uma imagem triste. Um menino com ar decepcionado apontava o dedo para um grupo de adultos que falavam alto e sentavam em círculo.
"Vocês são um bando de cagões", foi o que ele disse. E antes que eu pudesse tentar alguma explicação virou-se e foi embora.

Quieto dentro do ônibus silencioso encontrei-o. Ele logo entendeu que eu não o havia traído. Quando desci chovia.
Eu e o menino chegamos molhados.
Mas não foi por covardia nem por indiferença que andamos os dois cabisbaixos até em casa.
Se baixamos a cabeça foi por causa da chuva. Aquela chuva da manhã triste que insistiu em nos fazer companhia.

17 agosto 2011

O mais difícil é dizer sim

Samba de uma nota só.
Sigo insistindo em minha escola para que façamos um protesto por segurança. Um aluno nosso foi assassinado, em uma lan house, às onze da manhã de uma sexta-feira. Vários tiros pelas costas, porque usava um boné parecido com alguém marcado pelos assassinos.

A classe merdia parece que perdeu mesmo o sangue. Nem a morte de um jovem inocente mobiliza mais as pessoas. Que decepção.

E se fosse um jovem de classe média alta?
Para um garoto da periferia sobram racionalizações, suspeitas, e um deus que silencia. Questão de classe.

Voltamos ao velho Marx. Polícia está aí para defender quem? Nas vilas reina o crime. Jovens acuados silenciam e se resignam. Alguns insistem e encaram um trampo e uma merreca de salário, outros procuram algum entorpecente - maconha, televisão, internet, álcool, igreja. "Uns dizem fim/uns dizem sim/e não há outros", já disse um jovem Caetano nos anos oitenta.

Uma aluna me escreve: "sou legal com meus amigos, mas em casa me tranco no quarto, choro, me corto, bagunço tudo...o que devo fazer?".

Todos os dias alguém me pergunta "o que que eu faço 'sor'?". E vamos procurando novas possibilidades. Não desistimos da vida, nós, os jovens de qualquer idade.
Pergunta que não se colocam aqueles que não fazem coisa alguma pela meninada.
O que fazer?
Perguntinha básica. A gente nem precisa de filosofia alguma pra se colocar. Só daqueles dois neurônios que restaram e estão pipocando em algum lugar lá dentro do coco.

Mas tá difícil pensar, neste mundinho besta onde a maior preocupação é se vão ou não vão conseguir trocar de carro no final do ano.

16 agosto 2011

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


Carlos Drummond de Andrade

14 agosto 2011


“Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos, e que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que me despeço de uma pessoa pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte surda caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.” Raul Seixas




Todos nós sabemos da nossa finitude, que a morte um dia chegará até nós. Mesmo quem acredita em outras vidas ou coisas do tipo, sabe muito bem que esta vida é única.
Quando morre uma pessoa velhinha quase sempre nos conformamos. Ficamos tristes, sim, mas fica sempre aquela sensação de que o tempo fez o seu trabalho. Vamos no velório, choramos, mas os comentários são sempre aqueles do tipo “descansou”, “agora ficou em paz”. Se a pessoa fumava ou bebia muito, se tinha uma doença grave, nos confortamos com a ideia de que talvez a morte tenha sido a melhor solução. Não suportamos o sofrimento, por isso achamos que a pessoa ao morrer se libertou daquilo que a fazia sofrer.

Mas, e quando é um jovem que morre?

Não há consolo possível diante de uma criança ou um jovem morto. Se era doente, se sofria de uma enfermidade terrível...mesmo assim é quase impossível suportar a ideia de que a vida seja abreviada, que acabe tão cedo.
Um jovem que morre assassinado é um absurdo ainda maior. Não cabem justificativas. Nenhuma filosofia explica.


Juarez Fernando Oliveira Weber, 15 anos, foi assassinado em 12 de agosto de 2011. Estava em uma lan house do bairro Restinga, na periferia de Porto Alegre/RS.

11 agosto 2011

A fúria dela

Hoje lembrei de uma certa madrugada gelada, lá pelos inícios dos anos 80.
Eu vivia em uma cidade a 30 km de distância de Porto Alegre.
Saímos eu e meu irmão mais novo às quatro da manhã de casa.
Ele precisava de um exame que só havia aqui. Chegamos lá pelas cinco e pouco
na fila de um postão do INPS (hoje SUS), próximo às margens do rio Guaíba. Frio gaúcho, de doer nos ossos.
Quatro horas de fila. Fila na rua. Fila nas escadarias do prédio. Fila no corredor. Fila na entrada do consultório. Meu irmão escarrando, o peito congestionado. Centenas de miseráveis como nós, histórias parecidas, dramas compartilhados.

Hoje também li na imprensa que a presidente do Brasil ficou chocada.
E furiosa também.
A fúria dela é porque viu na TV um sujeito algemado. Um ocupante de cargo importante em Brasília, acusado de corrupção. Ela acha isso um absurdo.

Pois eu, na minha estupidez de brasileiro nato, acho que as filas do SUS é que são um absurdo.
Viva as algemas nos braços sedosos dessa gente de mãos leves.

Se a presidenta quer ter uma experiência humana fudamental de fúria, que venha às quatro da manhã para uma fila do SUS.
Uma espera apenas, de algumas longas horas. E depois alguns meses de espera pela consulta com um médico especializado, que em geral vai olhar para a sua cara sem vontade e lhe atender com a delicadeza de um açougueiro.

Quem sabe uma fila do SUS na vida da presidente lhe faça muito bem.
Talvez ela até esquecesse dessa baboseira de copa do mundo...

08 agosto 2011

Giordano Bruno e a magia do infinito




Giordano Bruno (1548-1600) foi um grande filósofo italiano que viveu aquele período efervescente das grandes viagens marítimas e descobertas. Quando ele nasceu, para se ter uma ideia, os portugueses recém começavam a se instalar no litoral brasileiro. Haviam chego aqui menos de cinquenta anos antes.
Bruno cresceu em meio ao clima do Renascimento, da descoberta dos chamados novos mundos, da ascensão da burguesia. A arte como um todo passava a revalorizar o humano. As “ciências ocultas” e o esoterismo ganhavam adeptos e eram amplamente difundidas, embora proibidas. Os valores morais do cristianismo perdiam sua força e os detentores do poder, questionados, reagiam muitas vezes com uma violência bárbara. A revalorização da Antiguidade colocava em dúvida a filosofia dominante, baseada numa certa leitura de Aristóteles.
Mas é a teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543) que vai exercer grande influência no pensamento de Bruno, pois vinha confirmar o que ele já conhecia através da leitura de textos antigos: a Terra não é o centro do Universo, como queria a Igreja, e sim um planeta como qualquer outro girando em torno do sol.
Ele não concordava com a visão predominante em sua época, de que o universo seria formado por coisas fixas criadas por um Deus transcendente. E ia além, afirmando que Deus na verdade não é um “primeiro motor imóvel”, como queria Aristóteles. Nada no universo é imóvel e Deus faz parte de tudo, ou melhor, Deus é o Todo e nós humanos seríamos seres privilegiados porque nossa mente é idêntica à divina.

O universo pensado por Giordano Bruno é infinito, em constante transformação, repleto de outros mundos habitados como o nosso, como já havia escrito Lucrécio 50 anos antes de Cristo: “Tudo o que existe é ilimitado...”, dizia ele.
Desde o século VIII e especialmente a partir do século XII, circulavam pela Europa as obras de Aristóteles, trazidas pelos muçulmanos. Estas obras vão mexer com o mundo cristão. A razão começa a ser recuperada, assim como o interesse pelo raciocínio e a observação.
Mas a redescoberta de Aristóteles acaba tornando-se um dogma, e nos trezentos anos posteriores apenas se veriam repetições do que ele disse, e tudo o que escreveu tomou a validade de lei inquestionável. O mundo aristotélico, estático e rígido, era ideal para manter a segurança e a fé numa verdade inabalável (como queria a Igreja), uma verdade que servia para a manutenção de quem estava no poder.
Nesse meio tempo muitas vozes irão questionar tudo isso. Entre elas estão Roger Bacon e Guilherme de Ockham.
Giordano Bruno talvez seja a figura mais característica daquele período, pois era um verdadeiro eclético, que bebeu de todas as fontes do seu tempo. Ela tentava mostrar, com suas pesquisas em diversas áreas do conhecimento, que sobre uma mesma realidade pode-se ter pontos de vista diferentes e até mesmo conflitantes. Nos dias de hoje isto pode parecer até óbvio, mas naqueles dias podia custar a vida, como de fato aconteceu: Giordano Bruno foi queimado vivo pela Inquisição, em 17 de fevereiro de 1600.
Para Bruno o mundo era coberto de signos que necessitavam apenas ser decifrados. As verdades que estes signos, estas marcas contém, eram tão universais quanto o próprio Deus. Elas estão inscritas no universo. Um universo vivo, cheio de correspondências, animado e povoado de espíritos, que fala o tempo todo e sua fala pode vir tanto das estrelas como dos vermes da terra.
Ele olhava para o alto e via um espaço repleto de outros seres como nós, um universo homogêneo e inteligente, composto de mundos em correlação infinita, unidade de ser e de vida, extensão do ser divino uno e total.
No homem se reflete a inteligência do universo, e em sua mente encontra-se contraída e inteira a ordem do mundo. A dignidade do homem está em ser ele igual à unidade a qual pertence, e seu poder de conhecimento e participação provém da totalidade e existe para ela. A importância da magia na obra de Bruno se encontra neste ponto, pois é através dela que o homem alcançaria o seu máximo poder de conhecimento e desvendaria os segredos da Natureza, segredos esses que são o próprio conhecimento.
Bruno afirmava que a reforma moral se produz no céu. Quer dizer, da mesma forma que os astros receberam novas posições no céu, dentro do homem também deveriam ocorrer as mesmas transformações. É na mente que se processam todas as mudanças, por isso o homem é o lugar cósmico por excelência, centro de todos os centros, lugar onde convergem céus e terra.
Bruno pretendia realizar na mente das pessoas a mesma revolução que estava acontecendo na maneira de pensar o universo. Retirar a Terra do centro de tudo não poderia ser algo tão simples e deveria acarretar enormas transformações de pensamento.
Uma destas transformações refere-se a ideia de Deus. Deus está em todas as coisas, ele é a alma do universo. Decifrar a natureza é desencadear seu poder. Porque Deus, enquanto objeto de estudo da filosofia, é a própria natureza. Assim, como natureza, ele é a causa e o princípio do mundo. “Causa” no sentido de determinar as coisas que constituem o mundo, permanecendo distinto delas; “princípio” no sentido de constituir o próprio ser das coisas naturais. Deus, segundo Giordano Bruno, é “todo o infinito implícita e totalmente”.
Difícil de entender? Talvez. Mas o mais provocador, para a época, é o que ele deduz de tudo isso. O homem, para chegar a Deus, ao invés das orações e palavras convencionais teria que passar pela natureza e suas manifestações. A natureza seria a voz viva, a palavra original que fala a própria linguagem divina. Cabe aos homens então decifrá-la, acordando do sono do cristianismo.
Bruno leu os textos antigos, sobretudo os famosos escritos de Hermes Trismegisto e lançou sobre eles o olhar de seu tempo: a religião mágica egípcia seria a única religião verdadeira e teria sido corrompida e obscurecida pelo judaísmo e pelo cristianismo. Dentro dessa tradição Deus aparece como “sem forma e sem figura”, privado de essência.

Elenilton Neukamp

05 agosto 2011

Mundoente

Um terrorista cristão, num país pacato, se autoproclama um "cruzado", mata dezenas de pessoas num acampamento, lança bombas e ainda se acredita no direito de pedir a destituição do governo.

No país mais rico do planeta, o presidente tenta criar um embrião de sistema público de saúde e é "acusado" de socialista por um bando (numeroso) que se diz atacado em seu "direito de escolha".

Aqui na província de Porto Alegre alguém coloca veneno de ratos na merenda das crianças de uma escola. Será também um "cruzado" numa missão de limpeza planetária?

Enquanto isto, uma pá de gente que nunca reparou na lua cheia se prepara seriamente para o que crê ser o fim do mundo - o final de um ciclo no calendário (circular) maia.

Tá doente de que o nosso mundinho?



Elenilton Neukamp

Ai, que machões!

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Em matéria de política, o vereador Carlos Apolinário é um grande adepto do troca-troca.
Já esteve no PMDB, passou por um tal PGT, frequentou o PDT e hoje se abriga no DEM. Apesar disso, Apolinário é um homem de convicções. Acaba de conseguir aprovar o Dia do Orgulho Heterossexual, que o mobiliza desde 2005.
De 55 vereadores, 31 machões votaram a favor da data comemorativa -um monumento à homofobia chancelado pela casa legislativa da maior cidade do país. Não deixa de ser um exemplo triste mas também cômico de sucupirização explícita da Câmara Municipal de São Paulo.
Cada um dos marmanjos recebe por lá R$ 15.033 mensais de salário, mais R$ 16.359 de verba de gabinete para custear despesas várias. Somando-se a bolada com a verba dos assessores, cada vereador custa aos cofres públicos R$ 115 mil por mês.
Esses senhores gravitam em torno de seus interesses, à margem da formulação de políticas públicas ou do planejamento estratégico da cidade. Operam no balcão, muitos deles especialistas em criar dificuldades para vender facilidades.
Não lhes faltou tempo nem energia para aprovar esse disparate, de fazer corar Jece Valadão. Os heterossexuais não são uma minoria, nem quantitativa nem sob o aspecto comportamental. Não existe discriminação -piadas, humilhações, ameaças e agressões, físicas ou morais- a casais ou pessoas hétero.
Mas essa não é apenas uma lei inútil. Trata-se de uma iniciativa nociva, que, a pretexto de "resguardar a moral", atiça o preconceito, incorporando-o ao calendário oficial da cidade. Seria como inventar o Dia da Consciência Branca.
Ao reivindicar um direito que nunca esteve ameaçado, o que se visa é bombardear direitos inexistentes ou em gestação. Essa fascistada representa menos uma data a ser celebrada do que um passe livre para que nos demais 364 dias do ano o macho ameaçado pela própria homofobia possa exercitar as várias faces da sua intolerância.

Texto publicado na Folha de São Paulo, em 05 de agosto de 2011

03 agosto 2011

Bebês de luxo

No Rio Grande do Sul, onde moro,
foi inaugurada a primeira loja de luxo para bebês.
Mamães com casacos de pele na inauguração.
Papais com sorrisos engarrafados e bebês com nomes estrangeiros.

Pobres criancinhas.

E este nosso mundo maluco cada vez mais brega...


"São caboclos querendo ser ingleses" (Cazuza)

02 agosto 2011

Solidão

Na ilusão de esconder-se da solidão
os homens criaram máquinas
de fazer barulho.
E puseram-se a bater seus enormes tambores.
E amplificaram alto-falantes,
caixas sonoras, bumbos
e bombas.
Tontos, todos eles.
E eu.
A solidão é surda e muda.