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23 setembro 2010

Primaveras

“...todo jornal que eu leio/me diz que a gente já era/
que já não é mais primavera/oh, baby, oh, baby/
a gente ainda nem começou...” (Raul Seixas)

No final dos anos oitenta um sopro de primavera parisiense passeou por nossas ruas. Como bom caminhante, dobrei com ele minhas esquinas. E fizemos movimentos. E paramos o trânsito. Piquetes sob a chuva que trancavam as portas da madrugada à força de um abraço apertado. A energia, a mágica e envolvente energia das multidões unidas em um só grito. “Fecha! Fecha! Fecha!”, e as portas baixando. Corre, não respira porque isso daí é gás lacrimogênio! No trabalho os colegas rindo e chamando o rapaz de sonhador. Entra o gerente geral: “O que é isso escrito no seu rádio?” Um adesivo improvisado. Brasil Urgente, Lula presidente. “O senhor pode passar no departamento pessoal”. O senhor de quinze anos é demitido mas não se dobra. Ah, se todos ao menos uma vez na vida pudessem sentir aquela sensação de poder, aquela liberdade, aquele abrir o peito assim no meio da rua... Aos trinta e tantos ele caminha em vastas e amplas calçadas carentes de gentes re-unidas, escandalosas em suas urgências. Mas agora o Brasil deixou de ser urgente. E o gerente geral vai dormir, feliz com o seu presidente.


Construímos sonhos. Levamos nossos mais nobres sentimentos para passear nas praças. Ar livre. Sol para as generosas idéias. Bandeiras vermelhas e música. Muita música, porque um outro mundo não pode se fazer ao som das engrenagens. Nos diálogos diários e no balançar do ônibus uma nova conquista. Mais companheiros na nau colorida das transformações. O país dos jovens. Adolescência crivada de flores, adornada com estrelas. Tudo que foi quimera agora se torna imediato. O dia será hoje. Não há mais séculos a esperar. Somos mais fortes que essa história bruta. Vem, pega minha mão. Se me deres um beijo haverá mais um motivo para minhas lágrimas...
Quando despertamos, algo estranho embaçava nosso olhar. A História era mais forte do que imaginávamos. Os que antes podíamos mirar fundo nos olhos agora já estavam bem longe, pequeninos em frente a tolos aglomerados. E o que se disse não era bem assim. Quem é o inimigo? “O inimigo sou eu? O inimigo é você?” As palavras são trancafiadas em palácios. E sufocam. As palavras morrem porque sugam seu sangue.
“E já não se sabia mais quem era humano e quem era porco”.

Estamos no século vinte e um. Mais ávidos que nunca pela criação de outras primaveras.

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