Total de visualizações de página

10 abril 2010

CAZUZA

Escrevendo para a Adriana Deffenti, que vai fazer um show em homenagem ao Cazuza dia 25 em Porto Alegre, lembrei de um textinho que coloquei no meu livro "A caixa de perguntas" (ainda em busca de editora)...
Aí vai.


Cazuza

No sacolejar sonolento do trem após um dia pesado de trabalho ponho os olhos no livro de minha amiga. Ela o abre num gesto quase ritual de respeito. É o “songbook” de Cazuza. A primeira frase de cada canção me carrega para dentro da música inteira, e me impressiono por saber na ponta da língua suas letras. Nunca havia parado para pensar na influência que o garoto rico, educado pelo sol e pelas areias de Ipanema, teve sobre minha formação de menino pobre habitado por piolhos e incomodado pelos bichos de pé.
Cazuza me parecia apenas mais um naquela cena toda do rock dos anos oitenta. Gostava de sua irreverência e do jeito de menino que recém aprontou alguma. Cantava alegre as músicas de sua banda, que tocavam no rádio. Porém, numa certa noite de domingo de minha adolescência, esse rapaz disse coisas que mexeram com minha forma de perceber o mundo. O ano era 1988.
Ao vivo e em rede nacional, vi e ouvi alguém falar com uma abertura e liberdade como não havia ainda percebido. O programa se chamava “Cara a Cara” e era apresentado por Marília Gabriela. Olhando docemente nos olhos da entrevistadora e com uma certa clarividência, Cazuza deixou-se descobrir e falou claramente sobre as drogas, o sexo, a juventude, a política.
Naqueles tempos já se falava muito em AIDS, e o vírus assustava. A direita religiosa falava em castigo divino. Cazuza era portador, o que significava quase uma sentença de morte. Entretanto, não estava preparado ainda para revelar publicamente. Muitos anos depois, ouvi da boca da própria Marília que durante um dos intervalos daquele programa ela havia tentando convencê-lo a falar a verdade, pois isso lhe faria bem. Ele respondeu “não” à pergunta, embora já estivesse no disco a frase reveladora: “O meu prazer agora é risco de vida”.
Cazuza deparou-se com sua finitude e isto amadureceu o homem e o artista. Nada mais de letras inocentes sobre casos fugazes. A voz cada vez mais rouca e fugidia tocava nas questões básicas da existência, com uma profundidade poucas vezes vista na música popular brasileira. Um mês antes de desaparecer e com uma palavra apenas, Raul Seixas definiu-o muito bem: “visceral”.
A revelação de que tinha a doença abriu as portas para a discussão pública sobre ela. Outros artistas antes dele haviam morrido em silêncio e abandonados por todos. Cazuza, ao contrário, levou multidões a seus shows. Multidões que choravam e pensavam estar assistindo a uma espécie de lenda viva. Mas não era uma lenda que estava ali, era um homem, um artista sensível que soube captar o “espírito” de seu tempo e de certa forma antecipá-lo.
O que dizer de uma canção como “Ideologia”, por exemplo? Quando escreveu a letra, ele sequer sabia o significado da palavra. O Muro de Berlim ainda não havia caído, mas aparece na TV um irreverente e crítico Cazuza jogando no mesmo saco os símbolos do cristianismo, do comunismo, nazismo, etc. Estávamos no início da ascenção da esquerda no Brasil (que Cazuza também apoiava), e no entanto ele pedia uma ideologia para viver. Parecia um desencanto anunciado, um prenúncio da decadência dos anos noventa, em que a indústria de cultura produziria o que gerações futuras – se tiverem dois neurônios para se encontrar – sequer chamarão de música. Em outras letras há uma sensibilidade criativa, como na tirada tipicamente nietzscheana “mentiras sinceras me interessam”.
O disco “Burguesia” é seu último trabalho em vida. Lembro que a primeira vez que ouvi a música tema do trabalho, chorei copiosamente. Mais uma vez ele estava dizendo aquilo que boa parte da minha geração estava pensando e querendo. Cazuza, o menino rico e mimado, se voltava radicalmente contra sua classe social, assim como em outro contexto havia feito Sartre. “Porcos num chiqueiro são mais dignos que um burguês”, ele diz enraivecido. É a denúncia mais ácida e explícita contra a elite brasileira.
No clipe da música ele aparece com os pais em um iate, enquanto crianças pedem esmolas. “Sou rico mas não sou mesquinho/eu também cheiro mal”, Cazuza vai dizendo, enquanto explica que nem todos querem abandonar o país com uma pasta cheia de dólares. Há também nesta elite econômica aqueles que pensam em construir um país.
Este disco encerra com uma belíssima canção chamada “Quando eu estiver cantando”, onde ele fala que a música é aquilo que o mantém vivo. E assim foi. Cazuza viveu enquanto pôde cantar. Esta canção vislumbra a morte iminente, e é ao mesmo tempo um poema triste e apaixonado pela vida.
Posso ser um exagerado, jogado aos seus pés, mas tenho a intuição de que permanecendo vivo Cazuza se transformaria em um outro Vinicius. Um destes grandes poetas populares que encantam a todos e a tudo em que tocam. E compõem poemas e escrevem canções que depois viram a alma de um lugar; aquelas coisas lindas que se transformam no que há de mais belo no senso comum de um povo.

3 comentários:

  1. Olá...
    Estou completamente apaixonada e encantada por este blog...
    Seus escritos são... indefiníveis.
    Ganhou uma fã.

    Beijos

    Milla Borges

    www.millaborges.com/blog
    www.twitter.com/millaborges

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo texto!

    Realmente Cazuza vai eternizar-se
    com suas canções e seu jeito irreverente de ser.

    Uma poeta da musica brasileira que merece ser lembrado infinitamente...

    Abraços !!!

    Jeferson Schneider

    ResponderExcluir
  3. Cara, de arrepiar essas palavras!
    É reviver a adolescência e sentir uma certa nostalgia...
    Parabéns pela forma como tu brincas com as palavras.
    PS.-"Só não há perdão para o chato!"

    ResponderExcluir

Seu comentário é bem-vindo. Mas não deixe-o sem assinatura.