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22 março 2010

É verdade que Nietzsche matou Deus?

É verdade que Nietzsche matou Deus?

Deus é o silêncio do universo, e o ser humano,
o grito que dá sentido a esse silêncio.
José Saramago

“Deus está morto”. Esta é uma frase famosa do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (diz-se “Níti”). Lendo-a assim, tirada do contexto em que foi pensada e escrita, ela parece – ao menos para as pessoas que creem – um tanto absurda. Mas esta afirmação vai muito além da simples frase feita. E dá muito o que pensar a crentes e ateus do mundo todo.
Dizer que Deus está morto é o mesmo que dizer que um certo mundo desapareceu. Nietzsche (1844-1900) viveu no século dezenove, que se dizia uma época cheia de descobertas e conhecimentos novos.
Para ele, havia um ar pesado em sua época. Todo aquele discurso que falava em progresso escondia em si algo putrefato e prestes a explodir. A morte de Deus é uma forma simbólica de dizer da morte do Ocidente, dos valores que construíram toda uma civilização. Nietzsche foi fundo nas suas críticas, afirmando que valores como a igualdade não passavam de grandes disfarces que escondiam a consciência de culpa dos mais fortes e o desejo de vingança dos oprimidos.
O cristianismo, para Nietzsche, havia corrompido boa parte da humanidade pregando um mundo ilusório fora daqui. Enquanto esperavam recompensa divina os homens se esqueciam de viver. E o que é ainda pior: maltratavam-se, se automutilavam, esqueciam que tinham um corpo. Tudo em nome de um outro mundo, um além ilusório criado pelas religiões e seus poderosos sacerdotes.
A tradição da filosofia até então sempre colocava Platão como um de seus maiores mestres. Muitos até diziam que depois da grandeza dele tudo parecia pequeno. Nietzsche nunca negou a importância do filósofo grego, mas passou toda a vida a atacar o seu pensamento.
A filosofia de Platão teria nos colocado num falso dilema, ao separar a realidade em dois: o mundo sensível e o mundo das ideias. Depois teria vindo o cristianismo, e se aproveitando disto teria dito que o mundo das ideias era o reino dos céus. Assim, os homens passaram a negar a vida e a maldizer o mundo em que viviam. Sentimentos tão humanos como o ódio, a vingança e o desejo, haviam sido reprimidos em nome de um mundo perfeito que não existia. Esses impulsos contidos voltavam em forma de doenças e ressentimento, envenenando os homens e suas relações.
A tradição filosófica sempre foi a da busca da verdade. Daí vem o próprio nome “filosofia” (philos+sophia), que no grego seria algo como amante ou amigo da sabedoria. O filósofo é aquele que sempre está em busca da verdade, da sabedoria, mesmo sabendo que nunca a possuirá plenamente. A verdade é a sua busca. Nietzsche foi ao fundo disto, radicalizou esta busca e colocou em dúvida a própria noção de verdade.
Ao investigar a origem do conceito do que chamamos verdade, encontrou a mentira. A verdade seria apenas uma criação humana como qualquer outra.
Vejam que não estamos falando de qualquer pensamento. Não é ao acaso que ele repetia que não queria seguidores ou discípulos. Ele dizia que filosofava a marteladas. Sua filosofia é extremamente provocativa, gerando reações que vão da adesão apaixonada ao desprezo. Há alguns estudiosos da filosofia que sequer admitem a ideia de que ele foi um filósofo, classificando-o como um escritor desvairado e inconsequente. Penso que são duas maneiras equivocadas de ler um pensador, ou negando totalmente o que ele pensou ou repetindo seu pensamento como se fosse algo divino.
Mesmo aqueles que nós costumamos chamar de “gênios” foram pessoas como nós, e foram educados e formados dentro de um determinado tempo. Ainda que tenham descoberto ou dito coisas extremamente avançadas para sua época, nunca podemos esquecer que eles são filhos dela. Nietzsche não foi diferente, e apesar de ser considerado por muita gente como uma espécie de “profeta” escreveu e pensou a partir do século dezenove (XIX) e contra ele.
Nietzsche estudou muito, e ainda jovem escreveu textos e livros que continuam impressionantes pela sua atualidade. Sua obra é grande, tanto pela quantidade quanto pela variedade e profundidade com que abordou os mais variados temas. Nos primeiros escritos ele segue uma certa organização acadêmica, que podemos encontrar até hoje na maior parte das produções em filosofia. Porém, posteriormente ele passou a escrever através de aforismos, fragmentos. Então, às vezes em um pequeno parágrafo encontramos uma condensação de informações e conceitos impressionante. Ele brincava com isto, dizendo que o efeito pretendido era parecido com um banho de água gelada: você entra rapidamente, toma uma ducha e sai renovado. É um susto que faz acordar!
Também por isto seus escritos são perigosos. Para usar uma imagem tirada dele, poderia dizer que quem sofre de vertigens não pode subir rapidamente até o pico de uma montanha. É necessário subir com cuidado, e lembrar que o ar gelado que faz lá no alto pede uma boa saúde. É preciso lê-lo sem pressa, digerindo cada palavra. Isto seria um bom conselho para qualquer leitura. Ler devagar. Mas em filosofia e ainda mais se tratando dele, nunca é demais lembrar.
A quem nunca leu nada de Nietzsche e quer conhecê-lo, eu sugiro um primeiro contato por via indireta. Há um pequeno livro, escrito pelo professor Oswaldo Giacoia Júnior, que é muito bom e extremamente elucidativo. O professor Giacoia é um dos maiores conhecedores de Nietzsche no Brasil. O livro chama-se Nietzsche, e eu o coloco ao final do texto.
Eu próprio estudei algumas coisas de sua obra, especialmente a sua relação com a educação, e publiquei o resultado em um livro chamado Nietzsche, o professor. Ele foi professor durante dez anos, escreveu sobre educação, e o tempo todo pensava em ser compreendido. Chegou a tirar do próprio bolso para publicar seus livros.
Nietzsche é famoso por suas frases de efeito, e muitas pessoas ficam paralisadas nelas. Mas é preciso ir muito além, se realmente queremos entender o pensamento de um filósofo. Mesmo assim, vou deixá-los aqui com uma citação famosíssima dele, que trata de um de seus conceitos mais importantes que é o do eterno retorno. Esta passagem se encontra no livro Gaia ciência, e me parece uma das mais belas exaltações à vida que aparecem na filosofia.

E se, um dia ou uma noite, um demônio viesse se introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: “Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai te ser necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, muito pelo contrário! A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão... esta aranha também voltará a aparecer, este luar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!” Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando este demônio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: “Tu és um deus, nunca ouvi palavras tão divinas!”
Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e talvez te aniquilasse, havias de te perguntar a propósito de tudo: “Quero isto? E quero outra vez? Uma vez? Sempre? Até o infinito?” E esta questão pesaria sobre ti como peso decisivo e terrível! Ou então, ah!, como será necessário que te ames a ti próprio e que ames a vida para nunca mais desejar outra coisa além dessa suprema confirmação!

A resposta de Nietzsche para a pergunta do “demônio” é um grande sim! Um grande sim à vida, com tudo que nela há de trágico e maravilhoso, belo e cruel...



Para pensar mais:

GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche, o professor. São Leopoldo: Nova Harmonia/Oikos: 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Um comentário:

  1. Este texto é parte do livro "Filosoficando - pra começar a gostar de Filosofia", que estou enviando para algumas editoras...

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