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22 março 2010

Anko e Ruth - À sombra das nogueiras

Para digerir a felicidade natural, como a artificial, é preciso, antes de tudo, ter a coragem de engoli-la.

Baudelaire


Anko subiu centenas de degraus para chegar até o alto do burgo (die Festung) de Salzburg. Na Idade Média, Salzburg foi considerada um Estado próprio, com seus becos estreitos, suas casas coloridas, seus castelos, palácios episcopais e catacumbas. Por isso a cidade foi reconhecida como uma das mais belas do mundo.

A vista, desde o castelo, sempre lhe parecera magnífica. Os efeitos da luz fugidia do sol sobre a neve de múltiplos tons de branco lhe fazia muito bem. Na igreja, as oito janelas explodindo a luz sobre o altar. Tudo era poesia no olhar do menino.

A neve descendo as cordilheiras, o degelo iluminado pela luz da manhã, os primeiros pássaros anunciando a primavera. Era já o mês de maio, anunciado pelo doce encanto daquele dia de abril.

Ruth fora visitar o túmulo da avó. Porém, parou seu olhar na estátua de um anjo que segurava uma flor. Próxima ao peito a flor estática e o olhar jogado no horizonte. Foi naquele momento preciso que ela e Anko se viram pela primeira vez. Entre a catedral e o cemitério. Sob a imagem divina e o olhar angelical. Ele sai da catedral. Ela do cemitério. O que os une é a contemplação do transcendente. Trocaram sorrisos infantis e rápidas palavras de encantamento que iriam ligá-los para todo o sempre.

...

Anko caminha sob as copas das nogueiras, pisa em seus duros frutos, recolhe-os calmamente do chão. As árvores centenárias se envergam ante o poder do tempo. Sob elas Anko pode elevar seus pensamentos a píncaros jamais pensados por boa parte de seus companheiros de mosteiro. Se a eles é dada a obrigação de permanecer longe do século, Anko se propõe contemplá-lo e vivê-lo a seu modo. Admirador secreto de Epicuro, é neste filósofo que ele busca sua inspiração para venerar a existência.

Formula a seguinte interrogação a respeito de cada desejo; que me sucederá se se cumpre o que quer o meu desejo? Que me acontecerá se não se cumpre?”. Anko meditava sobre este preceito de Epicuro. E se o desejo que lhe inflamava o peito um dia se tornasse enfim realidade? O jovem monge por alguns instantes sentia um frêmito de medo que lhe movia a espinha e lhe fazia tremer as mãos.

Dos sete dons do Espírito Santo, a sabedoria lhe era mais cara. Naquele momento, seu pensamento era quase sacrílego. Queria o dom da onipresença por um breve instante. Apenas para vê-la.

Afastou aquela ideia tola. E num relance voltou a cabeça até o que sentia sob os pés. Eram nozes, muitas delas.

As nogueiras são árvores gigantescas que se derramam pelo vale, gigantes generosos e sem pressa. Crescem solitárias ou em grupos à beira dos canais. Algumas possuem copas de mais de 15 metros de diâmetro e outros tantos de altura. Sob a sombra o sussurro do farfalhar das folhas e o canto vibrante das cigarras. No chão, um tapete verde de ervas nativas onde as pessoas podem sentar-se.

Algumas são muito velhas, com teias complicadas de raízes, crateras abertas no tronco seco. Morrem e ressuscitam; encontram-se restos de troncos meio caídos, ainda presos à terra, de que já não se espera nada e que no entanto lançam galhos novos, com folhas de um verde claro quase transparente ao sol.

Por vezes uma fila de nogueiras esconde uma aldeia inteira. Desenham uma linha ao longo dos caminhos, como uma pálpebra fechada. Pode-se ir para debaixo delas como quem entra num jardim ou numa casa grande e fresca. As crianças brincam lá embaixo, correm à sombra, molham os pés na água dos canais.

Era época de colheita. De todos os lados vinham aos ouvidos de Anko os ruídos característicos dos homens tentando derrubar as nozes, com varas compridas e finas batendo nos ramos. Equilibravam-se nas árvores como na própria vida, avançando pelo tronco, com as varas na mão, e depois por galhos cada vez mais finos, até quase chegarem às pontas. Há muito de aventura naquele colher de nozes, pois naquele jogo de equilíbrio e peso muitos já haviam perdido a vida. Outros andavam puxando a perna ou um braço caído pelas constantes quebraduras.

No chão, grupos de homens ou mulheres apanham as nozes. Os apanhadores avançam em blocos compactos, com baldes, segundo um percurso cuja principal lógica é não estar onde elas caem. Cada um tem direito, no final, a uma boa porção de nozes. Os miseráveis, que não têm muito mais do que sacos vazios para carregar sua fome, não são esquecidos na colheita de nozes. Uma tradição antiga, na aldeia próxima ao mosteiro, era que cada grupo de catadores dava um punhado de nozes para as crianças pobres que vinham pedir. Também não havia cercas ou muros dividindo as plantações, para facilitar a passagem livre dos famintos que ali aplacavam sua fome imensa.

Se Anko assim quisesse, poderia até mesmo atravessar o vale apenas sob a sombra das nogueiras. Sempre amou-as como uma das mais belas representações da grandeza e beleza da Criação. Foi sob estas majestosas árvores e encantado por elas, que ele teve a ideia. Ao pensar sobre sua melhora de humor ao passar pelas nogueiras e em tudo que diz respeito à colheita das nozes, Anko resolveu inventar algo. (...)


Este "algo" é o licor de nozes. O mesmo licor que vai dar sequência à história e que vai acompanhar o mini-livro "Anko e Ruth - À sombra das nogueiras", a ser lançado no dia 28 de março em Nova Petrópolis. A editora é a Nova Harmonia, a mesma que lançou meu livro sobre o Nietzsche..

Pela Livraria Cultura só estará à venda o livrinho, mas quem o adquirir por aqui leva também uma garrafinha do licor (que é delicioso!).

2 comentários:

  1. Me enganei: é tudo verdade.

    abraço, meu amigo!

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  2. Sim...o amor de Anko e Ruth segue vivo em nossos dias.. Em nós e na bebida que eles nos legaram, o "licor Sidekum", que está na vitrine da Livraria do Trem..

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